O que resta da Arte


O fabricante de espelhos

Tinha aprendido com o pai a arte de fabricar espelhos. Hoje era o fabricante de espelhos do reino e dos reinos vizinhos. Os seus espelhos eram vendidos em todas as feiras, penteavam todas as mulheres, vestiam toda a gente das redondezas. Fabricava pequenos espelhos redondos, rectangulares, ovais. Por vezes recebia encomendas especiais de nobres do reino. Encomendavam-lhe espelhos ricos, de molduras douradas, espelhos cravejados de pedras preciosas. Mas era raro, os nobres preferiam mandar vir essas preciosidades de terras longínquas.

Desde miúdo que fabricava espelhos, a princípio ajudando o pai, hoje sozinho. Era respeitado na aldeia. Era o fabricante de espelhos.

Mas vivia triste. Os pequenos espelhos que saíam das suas mãos, que lhe reflectiam o olhar ansioso, não o satisfaziam. Queria contruir um grande espelho, capaz de reflectir o céu. Queria construir um espelho que guardasse dentro de si todas as estrelas. Mas um tal espelho era-lhe inacessível. Precisaria para o construir de toda a prata do reino, da prata das baixelas dos ricos, da prata dos corações dos pobres. Por isso sonhava partir. Partir para outras terras. Procurar um mecenas para o seu espelho do mundo. Mas foi sempre adiando a partida. E continuou trabalhando, fabricando pequenos espelhos, cansando-se do seu trabalho, que lhe parecia supérfluo e sem qualquer interesse, e das suas criações que considerava insigificantes.

Até que um dia, cansado da rotina dos seus espelhinhos, resolveu finalmente partir. Reuniu num pequeno saco os seus bens mais preciosos - um espelho oferecido pelo pai, o primeiro espelho que construíra, ainda cheio de imperfeições, um espelho mágico que herdara da avó, mas cujas palavras mágicas desconhecia - juntou algum dinheiro para as despesas, e partiu.

Durante muito tempo viajou e por todo o lado viu as mesmas coisas. Atravessou montes e vales, aldeias e campos, cruzou muitos reinos sem encontrar resposta para o seu projecto. Ninguém parecia interessado no seu espelho-mundo. Todos tinham problemas a resolver, problemas que pareciam mais urgentes, mais importantes do que construir um espelho para reflectir o sol e a lua, o céu e os pássaros, a terra e as árvores.

Até que um dia, em que subia por um caminho estreito e íngreme, se cruzou com um grupo de viajantes, homens mulheres e crianças, com aspecto de viajarem há longo tempo. As roupas estavam gastas e sujas, os rostos cansados e cobertos de pó.

- Salvé viajantes! - saúdou-os.

- Salvé -responderam eles - Poder-nos-ias dizer se ainda estamos longe do reino onde reside o fabricante de espelhos?

- Sim, ainda tereis muito que andar. Mas o que quereis desse homem? - perguntou ele curioso.

- Há muito que os espelhos se deixaram de vender nas feiras do nosso reino. Os nossos últimos espelhos partiram-se e não conseguimos encontrar novos para os substituir. Ouvimos dizer que o fabricante de espelhos deixou de fabricar espelhos. Decidimos partir e viajar até ao seu reino, para o procurar e convencer a voltar a criar espelhos. Nós não temos possibilidades de os mandar vir dos reinos longínquos do oriente. Conheces bem o caminho até às terras onde mora esse artesão?

- Sim, conheço. Eu venho desse reino - e apontou para trás, na direcção das montanhas que se distinguiam ao longe. - Lá ao longe, por detrás daquela cordilheira. O fabricante de espelhos era meu vizinho.

- E conhecia-lo bem? Porque deixou de fabricar espelhos?- Os viajantes rodearam-no e olhavam-no com olhos cheios de ansiedade.

- Ele decidiu partir. Os espelhos que fabricava eram insignificantes. Queria construir um espelho enorme, que reflictisse o mundo.

- Insignificantes?! Como se vai pentear a minha filha para o baile de sábado à tarde? Não imaginas como ela era bela, reflectida por um desses espelhos! E como vou eu fazer a barba para a missa de domingo?… Não poderemos convencê-lo a continuar a fabricar os pequenos espelhos, enquanto constrói esse grande espelho do mundo? - o mais velho do grupo dos viajantes olhou-o e esperou a sua resposta.

O fabricante de espelhos hesitou até que por fim disse:

- Não precisais de continuar viagem. Eu vou voltar para a terra do fabricante de espelhos e asseguro-vos que na próxima feira encontrareis os espelhos de que necessitais. Pensei conhecer bem esse homem, mas afinal ele viveu sempre rodeado de espelhos que não o deixavam ver à volta de si.

Despediram-se, e o fabricante de espelhos voltou à aldeia para fabricar os seus espelhinhos de rostos e corações.

© Renato Roque 1997











Notas:

Última actualização = 17/03/97