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Renato Roque
 

Afinal não foi xeque-mate, foi xeque ao rei... 

    

O primeiro homem a comparar as maçãs do rosto de uma mulher com uma rosa foi com certeza um poeta; o primeiro que o repetiu era possivelmente um idiota.

  Salvador Dali

O que é belo?

O que não é?

Miguel Angelo disse que uma escultura só é bela se for atirada de uma montanha abaixo

e chegar ao sopé sem se partir.

O que é belo?

O que não é?

La neige, cést belle!

La merde, c’est pas belle!

 

John Havelda

 A revista Pública de 18 de Agosto de 2002 permanecia mergulhada na pilha de papéis, jornais, revistas e livros, em cima da minha mesa de trabalho, sempre desarrumada e sempre insuficiente em espaço, que é como quem diz em tempo, onde se acumulam todos os escritos a meio de uma relação.

 

Guardei-a então porque contém uma entrevista com o ex-director do Museu de Serralves, o catalão Vicente Todoli, onde este faz um conjunto de afirmações que me despertaram imediatamente a vontade de discutir e aprofundar, procurando sobretudo desta forma arrumar as minhas próprias ideias, ideias que tantas vezes fervilham, levantam fervura, mas que depois acabam por arrefecer.

 E sempre que tenho de arrumar as ideias recorro à velha física clássica, â dinâmica e em particular a Galileu. Monto o plano inclinado da escrita e deixo as palavras deslizar a velocidade uniforme para a folha branca do papel. É fácil, se preciso de aumentar a velocidade das palavras aumento a inclinação do plano, se preciso de travar a escrita diminuo a inclinação do plano. Depois de algum treino consegue-se encher com facilidade algumas A4 com as ideias arrumadas. Como já afirmei mais do que uma vez a maior dificuldade reside com as palavras esdrúxulas, mais difíceis de controlar e que com facilidade tendem a dividir-se por duas linhas, ou ainda mais complicado, entre duas páginas, obrigando a rapidamente ter de introduzir o chato do hífen. As palavras, as ideias, se não as fizermos escorregar no plano, mergulhadas no liquido vital, as mais densas vão ao fundo e enterram-se no lodo, as menos densas ficam a boiar de papo para o ar.

 Mas regressemos à entrevista do Todolli. Aquilo que me fez voltar a ela e ir desencantar a Pública já do ano passado, por debaixo de sedimentos escritos mais recentes, foi o curioso artigo de Affonso Romano de Sant'Anna na  Zona Non, acerca de Duchamp e do seu xeque-mate à arte.

 Marcel Duchamp deu um xeque-mate na arte há quase cem anos. Desde então ela ficou paralisada, prisioneira, dependente de uma solução que teria que passar pela desconstrução do impasse que criou. Duchamp encurralou o conceito de arte da época ao convencer seu auditório, que tudo era arte, desde que alguém assim o quisesse, desde que o artista apusesse em qualquer objeto, modificado ou não, sua assinatura. No instante em que, atónitos, seus interlocutores e, depois, as gerações vindouras, caíram neste jogo, a arte, como o Rei, ficou imobilizada, pois se tudo é arte, nada é arte.”

Affonso Romano de Sant'Anna

 Daquilo que eu conheço de Duchamp, contestoaria desde já a ideia de Sant’Anna. Duchamp nunca quis convencer o auditório “de que tudo era arte, desde que alguém assim o quisesse, desde que o artista apusesse em qualquer objecto, modificado ou não, sua assinatura”, mas sim colocar ao auditório a questão pertinente de se tudo poderia ser  arte, desde que alguém assim o quisesse, desde que o artista apusesse em qualquer objecto, modificado ou não, sua assinatura, o que é bastante diferente. Recorrendo também à imagem do xadrez, utilizada por Sant’Anna, o que ele fez não foi um xeque-mate mas sim um xeque ao rei e o rei, estúpido, em vez de recuar e contra-atacar, fez a única jogada que não deixou qualquer saída a Duchamp a não ser gritar “Xeque-mate!”.

 Esta história faz-me lembrar uma outra passada num hospital psiquiátrico, onde um visitante se cruza com um homem de visual transtornado, que arrasta atrás de si, presa por uma trela, uma escova dos dentes. O visitante, pretendendo ser simpático e meter conversa, pergunta-lhe “Então a passear o cãozinho?”. O homem olha para ele com cara de espanto e exclama “Cãozinho? Está a gozar? Então não vê que é uma escova dos dentes?”. O visitante, atrapalhado, pede desculpa e afasta-se envergonhado. Ao vê-lo longe, o homem vira-se para trás, ri-se e fala coma escova dos dentes “Anda, Lulu, que já enganámos outro!”. 

 Parece-me adivinhar ao longe o Duchamp a rir-se para a sua “fonte”, do papel que todos fazemos, perante o jogo e a brincadeira por si urdidos.

 Mas então o Todoli, o que é que tem a ver com isto, perguntarão, e com razão. Bem o Todoli, a certa altura na entrevista na Pública, à pergunta colocada pelo jornalista “Mas é isso Arte?” responde com desenvoltura  “Arte é tudo aquilo que um artista diz que é Arte!”. E talvez possamos adivinhar mais uma vez o sorriso maroto de Duchamp, lá de longe a observar-nos.

 Pensarão talvez que irei a partir daqui e de agora tentar contrariar essa afirmação de Todoli e porventura apresentar o meu ponto de vista sobre o que é arte. Desenganem-se! Longe de mim pretender contestar uma afirmação que afinal é confirmada pela realidade que todos os dias visitamos em galeria e em museus. E a realidade não se pode contestar, pode-se quando muito descobrir, compreender e tentar mudar, se estivermos na disposição de a mudar. Curiosa esta minha expressão espontânea de visitar a realidade, como se a nossa realidade não tivesse de ser construída por nós, mas visitada, para ser recebida. Adiante! Pretendo pois apenas, como afirmei logo no início, arrumar as minhas próprias ideias e compreender melhor o que essa afirmação possa significar.

 Esta ideia de Todoli – claro, não é só de Todoli - parece à partida ter um condão extraordinário. O de resolver de uma vez por todas uma questão que parecia insolúvel. O que é arte, o que não é? Agora será fácil, basta perguntar ao artista. Mas como quase sempre na vida quando resolvemos um problema, encontramos outro para resolver, porventura mais difícil ainda.

 E o problema é muito simplesmente: quem pode afinal ser considerado um artista, para poder afirmar que aquilo que produz é arte?

 E aqui das duas uma, ou todos somos artistas, se o afirmarmos, ou então os artistas são alguém que alguma entidade (idónea?) terá de classificar como tal. Tenho de confessar que não sei qual é exactamente a opinião de Todolli mas, curiosamente, também não importa muito, pois como mostrarei, quer num caso quer noutro, chegamos exactamente ao mesmo resultado.

 De facto, se optarmos pela primeira hipótese e considerarmos que todos somos artistas – basta cada um ter a ousadia de afirmá-lo – talvez se pense que o problema desaparece, pois não haverá neste caso necessidade de carimbar os artistas e os não-artistas. Mas leia-se a propósito, mais uma vez, o que diz Todoli na mesma entrevista. Ao responder à pergunta “Mas pode chegar o momento em que podemos distinguir, em que já podemos dizer se é arte ou não é arte, em que pelo menos percebemos o que fica e que não fica, o que passa sem deixar marcas?” ele afirma  sem rodeios “Isso é outra coisa. Dizer que é arte não quer dizer que fique ou não fique. Na literatura é o mesmo. A Barbara Coutland também é literatura, só que é lixo!”. E já antes, nessa  mesma entrevista, reforçara a sua opinião de que tudo pode ser arte, dizendo acerca dessa mesma arte “Depois eu posso achá-la boa ou má, mais nada.”. Ou seja, teremos neste caso não o problema de classificar quem são os artistas e os não-artistas, mas em vez disso um problema equivalente de escolher quem são os bons e os maus artistas, para assim sabermos o que é boa arte e má arte!

 Portanto, resumindo, ou precisamos de classificar os artistas, quem é, quem não é, para depois sabermos o que é arte, ou em vez disso teremos de classificar os bons e os maus artistas (Já agora com que escala? De 1 a 20? Apto, não apto?) para conseguirmos perceber o que é boa e o que é má arte! No fundo, no fundo, o mesmo tipo de problema para resolver! Aquilo que parecia ser uma panaceia destinada a solucionar o que milhares de páginas de teoria, milhares de discussões acaloradas ao longo da história da humanidade, trabalhos de filósofos e artistas não conseguiram resolver, afinal não é exactamente aquilo que parecia a princípio. "Arte é tudo aquilo que um artista diz que é Arte!" significa ao fim e ao cabo que a arte, o objecto artístico deixam de valer por aquilo que representam, por aquilo que questionam ou propõem, mas antes valem em função de uma classificação que entidades ou poderes exteriores deles fazem. O que vale não é a arte, o projecto artístico, mas a sua classificação, o que se escreve acerca deles. “Por mais incompreensível e hermético que possa ser!” argumentarão alguns, aproveitando a deixa. Ou seja, ao contrário daquilo que a afirmação inicial faria supor, o poder não foi colocado democraticamente nas mãos dos artistas, para classificar a arte, mas sim nas daqueles que os escolhem e classificam. 

 E isto faz-me pensar nas projectos polémicos de um fotógrafo que eu tanto admiro, curiosamente também catalão, Joan Funtcuberta. Este fotógrafo constrói cuidadosamente projectos fotográficos, onde a manipulação é magistralmente misturada em doses certas com a realidade e onde a fotografia se presta magnificamente ao seu papel de fingir de evidência para uma verdade completamente falsificada e manipulada. Fontcuberta deixa ao longo do percurso pequenos indícios do jogo. O seu principal objectivo, como afirma, é de aumentar o nosso grau de cepticismo. Levar-nos a desconfiar sempre da verdade absoluta que tantas vezes nos apresentam. Ainda assim muitos sairão com certeza das exposições de Fontcuberta convencidos daquilo que viram tão habituados estão a aceitar o que lhes é oferecido pelas instituições. Os indícios de jogo e de falsificação são subtis. Mas o verdadeiro problema é que na arte quase nunca as grandes manipulações têm quaisquer indícios, mesmo subtis, para o incauto espectador. O espectador como a palavra indica, pouco dado a cepticismos, expecta e consome. Quantos Ivans Istochnikov, coronel soviético inventado por Fontcuberta, ou Professores Ameisenhaufen, naturalista alemão, descobridor de inúmeras espécies exóticas, criados pela imaginação extraordinária do fotógrafo - tudo claro bem fundamentado em documentação fotográfica - teremos reverencialmente já visitado em galerias e museus, sem o saber, ou desconfiando, mas sem ter a coragem de gritar  “ O rei vai nu!” ?

 Perante tudo isto será possível voltar atrás e em face do xeque ao rei de Duchamp recuar o rei e contra-atacar? Parece-me que não, pois, ainda que me arriscando a contrariar Einstein, a flecha do tempo parece mesmo existir e o passado fluir inexoravelmente para o futuro. O melhor é voltar a pôr as peças no tabuleiro e reiniciar o jogo. 

PS – apesar de tudo, ao contrário de Affonso Romano de Sant’Anna, creio que o ‘pissoir’ e a roda de bicicleta do Duchamp são mesmo objectos de arte. Se não, não teriam tido a capacidade extraordinária de nos obrigar a tanto reflectir e escrever por causa deles. São arte ao colocar a questão “Será isto arte?”.  E se pareço contraditório, limito-me a repetir aqui a citação de Dali com que iniciei este escrito  “O primeiro homem a comparar as maçãs do rosto de uma mulher com uma rosa foi com certeza um poeta; o primeiro que o repetiu era possivelmente um idiota.”

Renato Roque. Janeiro 2003