Portugal não é um país de poetas! Antes fosse, ainda que bons, maus e assim-assim

Quando li a crónica do Rui Ângelo Araújo " Portugal não é um país de poetas", não pude deixar de sorrir. Está inegavelmente bem escrita, com graça e com sentido de humor. E aprendi que em Portugal não se trabalha porque o seu povo está sempre ocupado a engendrar uma rima. E percebi finalmente onde os meus colegas, que fazem tantas horas para além do tempo a que se obrigam contratualmente perante a empresa, e que a empresa tanto valoriza, gastam esse tempo: a engendrar quadras e tercetos para publicar nalgum jornal de paróquia. Porque não então tornar transparente esse direito inalienável, regulamentando-o, consagrando-o nos Contratos de Trabalho. Porque não prever horas para versejar, se já existem horas para tanta coisa: trabalho sindical, idas ao banco, aleitação, assistência à família, etc?

Só lá para o fim da crónica, o seu teor paternalista, por vezes a roçar alguma arrogância, me incomodou e me despertou vontade de responder e quem sabe lançar a polémica. Esforcei-me então por vencer a preguiça, que quase sempre acaba por me impedir de escrever em tempo útil, depois de num primeiro impulso a vontade espevitar, e aqui está. Sei que ao fazê-lo corro o risco de ser interpretado como um simples pateta, que contribui com os seus escrevinhanços para os índices de produtividade mais baixos da Europa - para mais ingenuamente confessei a minha preguiça - e que se sentiu atingido pelas palavras desse artigo. Mas, tentando decifrar as ideias de fundo por detrás da crónica, ao sentir que  tenho uma perspectiva completamente discordante do Rui Araújo sobre a criação e publicação, e porque me parece importante clarificar essas diferenças, arrisco. Afinal já fui chamado de coisa piores…

Nós vivemos num mundo de globalização onde, por um lado, se assiste a um clivar acentuado entre aqueles que produzem, neste caso arte ou cultura - os artistas, animadores e programadores profissionais - e aqueles que se limitam a consumir, mas em que, por outro lado, se conseguem criar algumas condições favoráveis para uma participação e criação mais alargadas e democráticas. A Internet é disso um exemplo e a Non! porventura uma das melhores e mais vivas provas de que como se criam hoje espaços, onde essa criação e publicação mais abertas são possíveis. Espaço que curiosamente se abriu também à publicação das palavras do Rui Araújo: seria por leviandade de algum "analfabeto irresponsável"?  Argumentará o Rui Araújo que a Non! não é exemplo, pois tem uma qualidade indiscutível e que o seu exemplo também não é exemplo, pois o seu artigo de opinião não tinha aspirações literárias/poéticas. Será, mas para existir a Non! têm de existir muitas outras, e ainda bem, se calhar para o Rui Araújo de qualidade duvidosa, que publicam os alexandrinos de um juiz de tribunal, as quadras de um trolha, um soneto de um funcionário público, ou uma pequena história de um engenheiro de telecomunicações.

Eu, ao contrário do Rui Araújo, não vejo qualquer problema em que qualquer um "ripe de um bloco de notas e faça odes ao vento, sonetos à vizinha, quadras às berças, versos a tudo o que mexa", nem a que os publique, se tiver o engenho e a arte para encontrar forma de o fazer. Certo, estamos de acordo, grande parte do que se publicará será de má qualidade, não terá originalidade, mas o mais importante é criar condições para se publicar todo o tipo de coisas; cada um de nós terá assim a possibilidade de escolher. Nunca se conseguirá apenas editar aquilo que tem qualidade. O tempo se encarregará de lembrar e de esquecer o que for de lembrar e de esquecer, porventura com alguma injustiça. Senão a quem competiria decidir o que tem qualidade e se publica e o que não tem qualidade e não se publica. Ao Rui Araújo? A qualquer comissão de iluminados? Como escolhê-los? Pelo curriculum universitário, pelo cartão do partido, por eleições? Directas ou a partir do Parlamento?

A luta deve ser orientada para facilitar a publicação e não para dificultar, para abrir e não para fechar o mundo das artes e da cultura às elites intelectuais, pois nesse caso também obras inovadoras, criativas, subversivas, provocadoras seriam, com toda a certeza, mais facilmente eliminadas. Que se criem milhões de sites, de revistas, de editoras com os mais variados critérios editoriais. Quantos mais melhor! Eu, como o Rui Araújo, escolherei os que me interessam, desde que saibamos da sua existência. E este é sim um problema importante em Portugal: o da distribuição/divulgação, mas esse seria outro tema de conversa.

Senão, porque também não acabar com as bandas de música, os grupos de teatro amador, os grupos corais e até com a imprensa regional? Para o Rui Araújo a poesia deveria ser apenas para os poetas a sério, com certeza a música só para os músicos a sério, o teatro para os actores a sério, a imprensa para os jornalistas a sério, (profissionais?).  Eu insisto: que mil novos grupos de teatro amador sejam criados, mil bandas, mil grupos corais e mil jornais regionais, cada um como um espaço para propostas alternativas.

O António Aleixo era poeta? E o José Afonso era músico? E Henri Rousseau era um pintor? Rui Araújo parece alinhar com a perspectiva dominante de denegrir o que é amador, popular. É a perspectiva dos comissários, dos programadores oficiais, dos profissionais da cultura e da arte, que vivem (não sobrevivem, vivem ) à custa da cultura e da arte; é aquilo a que uma amiga minha chama "a Cultura do Príncipe", a cultura feita pela ou na Corte para a Corte.

"Cada pessoa é um artista" como afirmava o artista plástico alemão Joseph Beuys, significando que o conceito de arte tradicional, encerrada nas Academias e Escolas de Arte teria de dar lugar a uma atitude criativa participativa, no nosso dia a dia, na nossa actividade quotidiana. Nem todos poderemos vir a ser um Camus, um Pessoa, um Picasso ou um Stravinsky, mas se criarmos as condições sociais para cada um de nós, se o quiser, poder intervir, criando, escrevendo, compondo, teremos com certeza um mundo melhor.

O Rui Araújo só compra e lê os livros que quiser, desde que esses livros existam, sejam distribuídos e divulgados. Só ouve a música que quiser. Deverá é ter sempre a hipótese de outra escolha. Prefiro ter o problema de escolha a não ter qualquer escolha.

Aliás não creio que a publicação seja tão fácil em Portugal. Se por um lado é um facto que todos os dias aparecem novos livros, novos jornais e revistas, alguns, estarei de acordo de qualidade discutível, a verdade é que um novo autor, poeta ou não, tem quase sempre muitas dificuldades em conseguir a edição. Creio, mais uma vez, que a Non! disso constitui uma evidência.

Finalmente, estou de acordo com o Rui Araújo: Portugal não é um país de poetas, Portugal é um país de patetas, patetas alheios da arte, da criação, da intervenção, patetas satisfeitos por se limitarem a bater palmas no fim do espectáculo, em vez de fazerem parte do elenco.

Cada pessoa é um poeta. Não em favor das árvores do mundo, mas do próprio mundo…

Renato Roque, Agosto 2001