O que resta da Arte


O que resta da arte ?


Corri os estores da janela do quarto para cima. Estava calor. Corri a janela sobre a calha. Sabia que poderia entrar um daqueles insectos de verão que são tão grandes que não entendo como suportam o próprio peso para voar. Mas corri o risco. De qualquer maneira ía dormir um bocado e não notaria se o insecto entrasse, além de que não tinha ainda chegado o verão. Não corri mais nada a não ser os estores, a janela e o risco. Mas estava cansada. O dia tinha-me corrido mal.

Às vezes parece-me ver uma meta ao fundo, mas é só o princípio de outro início. É aí que está a arte não é ?...na separação horizontal da terra com o espaço, no ponto de fuga de um olhar, talvez no centro da objectiva da máquina fotográfica, porque, alguém me contou um dia, quem vê o mundo através da máquina fotográfica possui mais que dois olhos, tantos quantos quiser. E são uns olhos que vêm apenas o que querem ver e muito mais. É aí que está a arte não é ?... na separação daquilo que é pelo que podia ser. No momento exacto entre perder ou guardar qualquer coisa que se podia ter perdido. Um acaso tão grande como termos nascido. Adormeci.

O telefone tocou 3 vezes. Meia adormecida baralhei o espaço escolhi o quarto e corri para o telefone ainda disforme na minha realidade. Como sempre reconheci a voz do outro lado da amizade. Renato Roque.

Os meus pés que ainda não tinham acordado completamente incomodavam-me com um formigueiro que se preparava para subir pelas pernas. Ordenei-lhes que acordassem. Tinhamos uma nova missão. Procurar os restos da arte.

Os amigos são assim, ensinam-nos a procurar tesouros. Constroiém mapas com uma cruz no centro da nossa vida.

É aí que está a arte não é?...

Desligamos o telefone. Sentei-me por cima do formigueiro teimoso das minhas pernas. Olhei à volta não estivesse por ali a arte perdida. Cheguei mesmo a vasculhar no lixo. Encontrei restos e encontrei restos de restos. Tudo era mais ou menos identificável com qualquer coisa menos com a definição de arte do meu dicionário de bolso.

Dentro do frigorífico num tupperware amarelo estava qualquer coisa esverdeada irreconhecível. Tirei o pacote de leite e com a outra mão tirei também o recipiente amarelo que abri depois de pousar o pacote de leite e fechar o frigorífico. Havia uma camada de fungos que se tinham aproveitado de uma posta de bacalhau que não comi. Vários tons de verde ponteados por uma espuma branca tinham surgido da decomposição do tempo. É aí que está a arte não é ?... na transformação do que existe pela possibilidade do que pode chegar a existir.

Desenhei o bolor a guache. Fiz o teste do principezinho e a resposta foi sempre a mesma " São recifes de corais. Que bonito...são corais não são ?" Disse que sim. Porque às vezes minto. É aí que está a arte não é ?...neste jogo que se vive. A arte agarra-nos por trás e tapa-nos os olhos com as duas mãos até que a descubramos no pormenor de um gesto, no timbre certo de uma voz, na forma de um corpo,na linha de um poema...É aí que está a arte não é?... algures atrás de nós. Entretanto vamos tacteando o mundo enquanto as mãos escolhem o momento certo para nos deixar ver qualquer coisa a mais.

E o que resta. O que resta é o pestanejar da máquina fotográfica dentro dos dois olhos. Porque também pertencemos ao resto. Basta que o mundo não baste aos sentidos para que se comece a fotografar. Desde a ponta dos pés.



Sílvia Susana

© Silvia Suzana 1997











Notas:

Última actualização = 17/03/97