ARTES,
PARA QUE VOS QUERO

Eduarda Dionísio

 

 

1. Uma montagem

Desculpem se me vou servir muito aqui das palavras dos outros, das vozes dos outros, mas acho que esse é um trabalho "cultural". O trabalho cultural que me cabe, que nos cabe. Para começar. E, é verdade, estamos sempre a começar. E isso é bom.

Sobretudo se as vozes desses outros são aquelas que têm dificuldade em se fazer ouvir e se reproduzir. Ou que nós - que nos preocupamos com estas coisas das culturas, das artes, de reunir pessoas por causa disso também - temos dificuldade em ouvir no meio do "bruáá" de que Jean Jourdheuil (que era bem bom que hoje pudesse estar aqui) já falava em 1979, quando por cá ainda nos movíamos com um cheirinho de crepúsculo de "revolução" à volta: 

"No bruáá do mundo como ele anda, os intelectuais (os artistas) levam uma existência insular (…) Solidamente radicados nesses rochedos de pasta de papel onde, ao que parece, antigamente o espírito sofria, chamam os interlocutores da sua condição e essas vozes respondem umas às outras, rente às águas, como no deserto." 1

 [E é a minha 1ª citação, várias vezes feita, aliás]

Sobretudo se essas vozes são aquelas que mais nos incomodam quando nos pomos a dar-lhes atenção e com isso cortamos (sabendo ou não que estamos a fazê-lo) com o fascínio das modas e pomos em causa o valor da sedução. As vozes a partir das quais o mundo se pode começar a abrir de uma outra maneira. E encontramos então coisas (não digo diferentes, digo coisas que não são indiferentes) para fazer nele. Mesmo quando sabemos que a transformação do mundo é um assunto complicado.

Portanto, não vou trazer para aqui mais do que já havia antes de ter começado a falar. Não vou fazer descobertas. Vou tentar arrumar ideias. E o que experimentei fazer foi, como noutras ocasiões, uma montagem.

E essa montagem, um instrumento com que tentei pensar primeiro por escrito, em voz baixa, com as vozes altas de muita gente (e agora em voz alta com quem aqui está) é para mim o contrário do lavar das mãos das citações de que se faz o pensamento (ou a ausência de pensamento) a que se costuma chamar académico, universitário, que se diz neutro sem ser, hoje o único prestigiado. Não uso aqui os textos dos outros para me defender e esconder, mas para me expor – que é uma coisa que me dá gosto.

É uma montagem manipulada, aviso.

Entre parênteses: porque é que "manipular" há-de ter esse sentido moralmente pejorativo, e não regressar ao seu sentido bem simpático de "trabalhar com as mãos"? Há, de facto, todo um trabalho a fazer sobre o vocabulário, esse vocabulário a que não se dá atenção e que nos envolve e nos arrasta para campos bem distantes daqueles que escolhemos, do "inimigo" diríamos noutros tempos mais a preto e branco. Que às vezes me apetecem.

Será uma montagem onde infelizmente (infelizmente?) haverá mais questões postas do que respostas dadas. Mas não é essa uma das funções das "estacas zero"?

2. Montagem e travelling

Está dito e redito, aceite e "assumido" que a montagem (pelo menos em cinema...) "diz". A ordem das imagens, o tempo que duram, a maneira como se encadeiam, se associam, se prolongam, se contradizem, e por aí fora, geram um "sentido". É então "ideologia". Só me sinto na obrigação de recordar esta ideia simples, a partir do momento em que se decretou, na teoria ou na prática, a morte das ideologias...

Mas tem sido mais complicado entender, mesmo "no tempo das ideologias", que um travelling em si (como lembrava o Rivette), o travelling ele próprio (antes da tesoura e da cola, portanto, e independentemente do que mostra, do "assunto") pode ser "de esquerda ou de direita"... E quem diz travelling, diz outro tipo de plano qualquer.

[Aqui gostava de ter a minha 2ª citação, do Rivette ou do Gilles Aillaud que também fala destas coisas, mas o meu fornecedor não encontrou]

Ou seja, entender que o ponto de vista, o olhar, ao escolher como vê escolhe o que vê, o que lhe interessa mostrar, e, ao mostrar como vê, está a dizer o que vê, o mundo como o pensa e como gostaria que ele fosse, indiferentemente da parte do mundo que põe lá... Ou seja, a "forma" é o "conteúdo", como por comodidade dizemos.

Lembro-me de o Jorge Silva Melo ter assustado, em meados da década de 80, com esta quase evidência um simpático e entusiasmado auditório de esquerda que, no refluxo da política, descobria a cultura e as "grandes obras" como uma realidade, até então posta entre parênteses.

Não, não, era a redescoberta do Maiakovski a gritar aos seus contemporâneos: "Não basta construir uma locomotiva/ apertam-lhe as rodas, põem-na em marcha/ Se o trovejar dos hinos não fizer tremer as gares/ para que serve a corrente alternativa?"[e esta não é a 2ª citação]. Parecia-me mais a descoberta da necessidade de "ter" cultura, uma "cultura-conhecimento", como meio de "inserção" numa sociedade que entretanto tinha bruscamente posto de lado a revolução (que se faria sempre sem cultura...), de se "adaptar" ao meio...

A discussão aqueceu. E não foi possível nem entender nem explicar tudo. E mesmo que tivesse sido, no afã cultural recente, da cultura como recurso, segunda escolha (claro), domínio justaposto ao da política na altura em baixa, à espera de regresso, uma parte do referido público havia de se precipitar, ao sair dali, talvez sobre o Fernando Pessoa (no auge da glorificação), ou Saramago (em rampa de lançamento), que garantiam um mais rápido "acesso à cultura", essa "cultura-consenso". Passavam (ou continuavam, conforme os casos) sem dar por isso a pôr entre parênteses esse "pormenor" , as respostas a perguntas assim: Há "direita" e "esquerda" na "cultura", nas "artes"? Há, pode haver, uma "cultura de esquerda"? E nela cabem as "artes"? E, se sim, como? E não será pelos tais travellings que ela passa, e pela própria convicção de que há travellings de direita e de esquerda, sim senhor? (Entre outras coisas, mas muito...).

A arte, só porque é arte (e quem decide dela?), a cultura só porque é cultura (e quem a administra?), não são de "esquerda", não senhor. O facto é que há um pensamento, ainda assim visível, que o diz, ou faz como se o pensasse, herdeiro do iluminismo e do combate ao "obscurantismo" de Salazar, que se veio ajustar não direi como uma luva (mas às vezes parece) ao neoliberalismo que estamos a viver sob a capa de "socialismo cultural", até há pouco aprendido na escola de Jack Lang.

Penso que este é um dos assuntos incómodos com que nos devíamos confrontar aqui: cultura de esquerda, cultura de direita; arte de esquerda, arte de direita. Para isso é que este edifício serve.

Desde que

1º) se aceite que o terreno das artes poderá comportar tudo e mais alguma coisa (podemos, pelo menos, admiti-lo à partida) mas que nunca poderá ser o terreno do "óbvio" e do "fácil" e que nunca poderá coincidir portanto com a "emoção fácil" com que todos os dias nos enganam;

2º) se tente rejeitar a tormentosa e teimosa e perversa dicotomia entre "forma" e "conteúdo" que parece perseguir-nos desde que o mundo é mundo - uma rejeição que passará por evitar tais palavras;

3º) se aceite o conflito, a separação das águas e a recusa dentro do discurso que sobre as artes fala, e se aceite vê-las como uma parte do mundo (para mim, uma parte importante do mundo), um mundo sobre o qual queremos agir (e também nisto das artes quero agir) – e que, se não for assim, elas não servem para nada; nem este edifício serve...

3. Em vez de pensar em forma e conteúdo pensemos antes em modo de produção e em valor de uso

Memória ainda: há eventualmente aqui algumas pessoas que se lembram com certeza como foi difícil encontrar uma fórmula para a "carta de princípios" da Abril em Maio que explicasse que "cultura" nos interessava. Sentíamos a necessidade e a obrigação de o fazer. Era um tempo em que a distinção (melhor dizendo, o conflito) entre "cultura" e "arte" não era para ninguém evidente. Foi sobre essa frase que se construíram os estatutos da associação e se foi desenvolvendo, melhor ou pior, uma prática de "escolhas". (E a primeira foi a própria associação.)

Ficou escrito e reproduzimos de ano para ano e de prospecto para prospecto [e esta é que é a minha 2ª citação] o seguinte:

"À "ABRIL EM MAIO" interessam todas as produções culturais dos mais diversos domínios (da música à agricultura, teatro, cinema, livros, artesanato, etc.) que pelo seu modo de produção, pela investigação formal ou pelo conteúdo, veiculem ideais de solidariedade, cooperação e inovação, visando a transformação e combatam o autoritarismo, a ideologia competitiva, o discurso dominante e os ditames do mercado." 2

Em tempos de Lisboa Capital da Cultura, o país dava os quase primeiros passos no puxar dos galões duma eventual "cultura culta" para inglês ver (muito nacional e "original" e ao mesmo tempo muito "universal", herdeira desses fantásticos e inquestionáveis descobrimentos). Dentro e sobretudo fora de fronteiras. Ensaiava-se o seu uso como propaganda política "soft" e começava a ser finalmente "produzida" como "mercadoria", à descarada. Tornava-se uma componente do "regime".

Parecia-nos a nós importante ter, nesse contexto, um conceito de cultura "abrangente". Ou seja: que não se confundisse com a "cultura culta" mas que incluísse os seus produtos, qualquer coisa que tinha talvez mais a ver com um "modo de vida". Delimitar o que nos "interessava" não se fazia através da escolha dum "tipo" de cultura, mas sobretudo através de uma escolha de "produtos". E parecia claro que nesse terreno sem limites do ponto de vista "disciplinar" como nos aparecia a "cultura" (não falávamos em "artes"), tomávamos para nós não todas as "produções" mas apenas as que 1º) fossem "veículos" de "ideias" (e eram três a ideias que nos interessavam: solidariedade, cooperação, inovação); 2º) visassem uma transformação (subentendido: social); 3º) combatessem o autoritarismo, a ideologia competitiva, o discurso dominante e os ditames do mercado. E como? Por três meios: 1º) o seu modo de produção, 2º) a investigação formal, 3º) o conteúdo". Tanto na agricultura (que teria de ser "biológica") como na poesia (que se vendia mal); tanto no fabrico de papel (que teria de ser reciclado) como na música (que poderia ser várias coisas).

Entre parênteses. Esta complicada frase teve vantagens práticas: com ela livrávamo-nos dos best-sellers; não ocupávamos tempo nem espaço com Ritas Ferros e sucedâneos, etc. ; mas foi sempre difícil explicar o que levava a também não gastar tempo e espaço com um prémio nóbel inscrito no PCP, e outros permanentes candidatos ao dito prémio e a outros prémios mais..., a não haver na nossa "loja" Agustinas nem Amálias, e estar o Celine ao lado do Gorki. E, com o andar dos tempos, estávamos simultaneamente a um passo da "imagem viva do sectarismo" e a produzir uma realidade comercial quase sem fronteiras com o "mercado normal"...

É aqui, e precisamente para desemaranhar este novelo, que chegamos a questão bicuda das "artes" e do seu espaço dentro de um projecto "cultural" de características "associativas", portanto sociais. Ora, em 1994, lidávamos com artes mas não falávamos em artes...

Com a enumeração das "áreas" onde os critérios se poderiam aplicar 1º) "modo de produção", 2º) "investigação formal", 3º) "conteúdo" (consideradas aliás em alternativa, o que alargava a escolha...), chamávamos, sim, a atenção para o peso que tem o "modo de produção" no "sentido" que as "produções culturais" adquirem (e só implicitamente nas "obras de arte") e também para o facto (nunca evidente apesar de sempre repetido) de esse "sentido" não ser o seu "assunto". Dávamos, nessa tal laboriosa frase, a mesma importância à "forma" (que teria de resultar de uma "investigação") do que ao seu "conteúdo". Mas, ainda aqui, caímos na esparrela destas palavras. O que mostra que, nem para nós, este assunto estava verdadeiramente resolvido. Se bem que muito tratado e "re-tratado". E nunca definitivamente tratado enquanto tivermos de usar estes dois incomodativos conceitos para dizer que são uma e a mesma coisa...

[E avanço para a minha 3ª citação] Estamos em 1938, em plena Guerra de Espanha. O jornal onde o texto aparece chama-se "Sol Nascente". O título do artigo é "necessidade de ver claro". O autor - que, se não está já no PCP então clandestino, está quase ou é como se estivesse (o que então acontecia) – tem 22 anos, chama-se Mário Dionísio e diz:

"A necessidade de modificação formal é evidente. Mas como inventá-la, como descobri-la sem que corresponda a uma modificação integral do homem? Para quê e como inventá-la, se ela deve surgir espontaneamente, sem programa, excepto o de exteriorizar uma nova estrutura?

[...] Não queremos negar o valor à intenção. Mas necessitamos de ir muito mais ao fundo. Necessitamos ver claro. Pobre modificação de coisas que estivesse nos fuzilamentos, nos coros guerreiros, numa bandeira ou vermelha ou branca..." 3

Se, por um lado este texto parece muito antigo (onde vão os "coros guerreiros" e as "bandeiras vermelhas" pelo menos nas artes...), o facto é que ele diz, além de outras coisas, aquilo que ainda hoje temos dificuldade em entender ou, pelo menos, em "formular" e "praticar" coerentemente nos nossos "gostos", nas nossas escolhas, e sobretudo quando abdicamos de escolher: que a maneira como se diz e o que se diz são uma e a mesma coisa.

Como é que nos podemos "contentar" com um romance escrito hoje como no século XIX se escrevia (e há muitos assim...) ou uma pintura que tenha como modelo o naturalismo académico (e ainda as há, umas verdadeiras e outras a imitar)? Como pode um objecto assim apontar para a transformação do mundo, "encher as medidas" (e não é isso que a Arte se esforça por fazer, "encher a medidas") de quem quer uma transformação do mundo, seja ela qual for?

Não pode. E se isto já vai sendo claro para muitos, que não há transformação do mundo sem transformação (que é invenção) das linguagens, parece outra a questão que hoje (um hoje que vem de longe...) está mais longe de ser resolvida (mas não será a mesma?): como é que um romance ou uma pintura que apenas inventa no terreno da "técnica" (não digo "forma", digo "técnica") pode ter peso na "transformação do mundo" e "interessar" a quem está interessado em "modificá-lo"? Ou seja: que podemos fazer com esse romance? com essa pintura? O que é que a esquerda pode fazer com elas? Que "vantagens" lhe traz?

Penso que este é outro (ou o mesmo) assunto com que nos devemos confrontar aqui: que "objectos culturais" é natural que nos interessem, a nós que, em princípio, queremos "mudar o mundo". Mesmo quando não sabemos como. Mesmo se sabemos que é uma questão que não está na ordem do dia. Mesmo que nos seja apontada como um pecado de "originais"? Onde procurar as razões das nossas escolhas?

Renato: eu estarei de acordo com a perspectiva de transformação do mundo, se entendida numa perspectiva muito aberta. Qualquer obra de arte, se inovadora, se criativa, se feita por alguém que, como tu observas à frente, se não sente bem no seu tempo, estará de certa forma a contribuir para a transformação do mundo. Tal como tu própria afirmas e eu realço: "se aceite que o terreno das artes poderá comportar tudo e mais alguma coisa  mas que nunca poderá ser o terreno do "óbvio" e do "fácil" e que nunca poderá coincidir portanto com a "emoção fácil" com que todos os dias nos enganam". Como pode doutra forma contribuir para a transformação do mundo um compositor cuja única opção é aceitar encomendas de particulares ou instituições e que tem de recorrer a outras instituições, orquestras, centros culturais, etc, para executar os resultados do seu trabalho? 

Se aquelas preocupações de 1938 continuam a ajudar-me a ter razão quando procuro o sentido do objecto de arte na sua "forma" sabendo que a sua "forma" é o seu "conteúdo" (e regresso, pela última vez, espero, a estas estranhas palavras tão familiares), a ter razão no que me faz falta, a saber que o mais interessante de tudo pode ser o que não existe ainda, o facto é que tenho de lhes acrescentar dois "campos", como se diz nas bases de dados, sem os quais não consigo delimitar hoje as minhas escolhas "culturais" ("estéticas", se quiserem), que têm a ver com o resto e que entram (e em que escala!) no próprio "sentido" da obra: falo do modo de produção e do valor de uso.

Renato: continuando a utilizar a tua imagem (as BASES DE DADOS) eu diria que uma obra de arte pode ter um grande número de atributos ou campos como tu lhe chamaste: tipo, criatividade, grau de inovação, capacidade de emoção, etc, e também, estou de acordo contigo, o modo de produção e o valor de uso, uns mais importantes do que outros, dependendo da obra e também naturalmente da perspectiva de quem a analisa. Aceito que para ti e outras pessoas os dois atributos que mencionas sejam em muitos casos os mais determinantes, mas há que ter algum cuidado: qual o valor de uso da composição musical que referi atrás? Qual o valor de uso da música de Mozart que até era pago pelos senhores da aristocracia de então? Eu diria que pode também ser perigoso se sobrevalorizarmos o valor de uso e esquecermos tudo o resto. Na Arte tal como na Ciência muitas vezes o valor de uso só se torna visível mais tarde e se à partida adoptássemos uma atitude focada apenas naqueles dois atributos (campos) estaríamos próximo daqueles que para a Ciência adoptam uma visão economicista. Muitos trabalhos na Matemática e Física que pareciam mera especulação revelaram-se prodigiosamente transformadores, às vezes muito mais tarde! Creio que o mesmo poderá acontecer nas Artes. Como classificar então um obra de arte, como fazer aquilo que tu descreves como separação das águas, com base no conjunto de atributos que a podem caracterizar? Talvez uma parte do problema resulte da impossibilidade de criar um conjunto de atributos que satisfaça as regras impostas a uma Base de Dados Normalizada: de acordo com essas regras os atributos deveriam, por exemplo, ser independentes uns dos outros, sob pena de termos problemas com a coerência da BD. Conclusão: não é fácil arrumar obras de arte em tabelas de BDs! Voltarei a a esta questão da separação das águas mais à frente.

4. "Artes" versus "bens culturais"

E vou voltar à ESTACA ZERO. Que é recordar um incómodo texto de Walter Benjamim, de 1940. Um primeiro pressuposto (ou ponto de partida) da "montagem manipulada" que me propus fazer. [E é a minha 4ª citação, que está, como outras, nas nossas agendas]:

"Todos aqueles que até agora conseguiram a vitória participam desse cortejo triunfal em que os senhores de hoje marcham sobre os corpos dos vencidos de hoje. A este cortejo triunfal pertencem também os despojos como sempre foi uso. Esses despojos são aquilo que se define como os bens culturais. (…) Como não estremecer quando se pensa na sua origem? Eles não nasceram apenas do esforço dos grandes génios que os criaram, mas ao mesmo tempo da anónima corveia imposta aos contemporâneos desses génios. Não há nenhum documento da cultura que não seja também documento de barbárie." 4

 Este texto duma voz (hoje bastante referida, o que aliás pode enfraquecer o seu valor de uso...) diz que é numa e duma sociedade capitalista que estamos a falar (o que necessariamente põe a questão dos modos de produção) onde existem classes, e exploração (o que necessariamente põe a questão do valor de uso das produções culturais).

Entre parênteses: nestes tempos de "globalização", de "hinos à igualdade" e de profissões de fé "democráticas", nunca será demais lembrar essa terrível contradição que vive dentro dos "bens culturais" que, entre outros bens, nos fazem viver (pelo menos a alguns) e que assentam sobre a morte de uns outros...

Chamo para aqui este texto por uma outra razão: explica-me sem explicar o sem sentido de usar hoje a palavra "vanguarda", aliada ou não à palavra "revolução", (e as práticas actuais que se assemelham às das "vanguardas" de outras épocas) enquanto tentativa para resolver o "mal-estar" que deriva destas duas certezas: que os "bens culturais" não passam de "despojos"; que qualquer "documento de cultura" é também um documento de "barbárie".

Entre parênteses: era bom poder retirar "vanguarda" do nosso léxico, um conceito hoje inútil na tarefa de "ver claro".

Três constatações, três vozes, todas de enfiada – com pouco ou nada de comum, e disso mesmo pode nascer a verdade de cada uma. [São a 5ª, a 6ª e a 7ª citações].

Jean-Pierre Garnier, sobre as "vanguardas actuais":

"Já há muito tempo que a arte de vanguarda, mesmo a mais "revolucionária", deixou de meter medo a quem quer que seja. [] A pequena-beauburguesia comunga com a grande na admiração das mesmas obras-primas "subversivas". Não têm conta os mecenas, públicos e privados, que se dão ao luxo de financiar "autores malditos". Com os proveitos materiais (desagravamentos de impostos) e simbólicos (imagem de "abertura", publicidade) inerentes. Atacar ruidosamente a "ordem moral" permite muitas vezes fazer esquecer com vantagem a ordem social que se defende. A virulência com que se ataca a primeira pode, de facto, ir de par com uma ligação não menos forte à segunda." 5

Jean Jourhueil, sobre a "gestão" actual de "vanguardas" passadas:

"Brecht foi montado massivamente quando a constelação das questões que ele podia levar a formular tinha perdido a actualidade. Isto parece-me ser uma característica das mais importantes da política "gesti-onária": é uma política do atraso, da nostalgia global, improdutiva." 6

Ben Vaultier (representado no Beaubourg, aliás) sobre arte e vanguardas:

"A arte está a andar à roda e produz vanguarda a olhar para o umbigo". 7

Volto agora ao texto de Benjamim, que não é só por isto que vem para aqui chamado, mas sobretudo porque, a partir dele, posso esforçar-me por distinguir "bens culturais" e "arte". Não é de "arte" que W. Benjamim fala neste texto. É de "bens culturais". E nesta sociedade (capitalista, insisto), a precisar de "vanguardas" para sobreviver, a distinção é importante, se não quisermos afundar-nos já.

Os "bens culturais", como os bens "mobiliários" ou "imobiliários" existem para serem "geridos". O Brecht de que o Jourdheuil fala é o "bem cultural" em que se transformou. A mim interessam-me os textos que ele escreveu e uma parte daquilo que outros, a partir dele, com ele, contra ele, têm feito, quando tem a ver com a vida das pessoas e vai ter a outras "artes" que por aí andam ou que ainda estão para vir. Artes, digo.

Entre parênteses: há um conjunto considerável de instituições, entre ministérios, escolas, museus, centros culturais e de investigação que servem para isso mesmo, para "gerir" os "bens culturais". E para criar problemas à "arte". O espinho da "inutilidade" da arte começa quando uma "inutilidade" consome tanta energia e dinheiro para se transformar em "bem" (cultural e não só) e quando cada um de nós se põe a fazer dentro de si o mesmo trabalho que as instituições fazem (para fora), erguendo por dentro da sua vida (ou ao lado dela) uma "instituição cultural" ou "transformando-se" em instituição cultural. Nessa altura, há fortes probabilidades de a Arte desaparecer.

Há hoje muita arte nos museus e até na praça pública. Mas é de "bens culturais" que se trata. À medida que esses espaços se vão enchendo, a arte vai desaparecendo da nossa vista e das nossas necessidades e entra cada vez com mais dificuldade nas nossas vidas. E até nos ateliers de quem tem como profissão "produzir objectos de arte".

Renato: será então este o destino de toda a obra de arte? Como entender por exemplo a obra de Van Gogh, de que o teu pai por exemplo gostava tanto, e que hoje enche as salas dos museus e mediatiza  qualquer leilão que se preze? Será hoje um mero bem cultural, se não entendida no contexto histórico em que foi produzida? E mesmo nesse caso? Ou conterá ainda a potencialidade transformadora do mundo? Se como tu dizes o objecto de arte é o resultado de o artista se não sentir bem com o seu tempo e pretender transformá-lo, será que a obra só é Arte enquanto presente ou futuro antecipado, podendo, tendo de?, passar a bem cultural a partir do momento em que se torna passado, passado no tempo, porventura nas inquietações que manifesta, e o sistema a integra em si? A obra de Arte nasce como obra e morre como bem cultural nas mãos do capitalismo? Será esse o destino de qualquer obra? O que pensar do facto de os cartazes de Maio 68 serem hoje vendidos por fortunas em galerias de arte? Ou será que uma obra de arte, mesmo se transformada em bem cultural pelo sistema, que revela uma capacidade extraordinária de engolir e assimilar mesmo aquilo que contra ele foi construído, vai manter dentro de si sempre uma espécie de capacidade transformadora que está ali à nossa disposição, contrariando aqueles que querem transformá-la num mero bem para consumir, como qualquer detergente ou automóvel, ainda que de outra forma? Eu, apesar de tudo, inclino-me para a segunda hipótese: acho que coexistem sempre em qualquer obra de arte as duas componentes: Arte e bem cultural com importância(?) diferente ao longo do tempo e dependendo de múltiplos factores, numa espécie de equilíbrio instável, competindo-nos a nós desequilibrar a balança para o lado da Arte!. Há que procurar contrariar aqueles que procuram reduzir a obra de arte a um mero bem para consumir durante um qualquer evento cultural bem-comportado e bem organizado pelos programadores culturais do regime.

Se se pensar na "arte" como uma "parcela" desses "bens culturais", se não se tentar fazê-la saltar para fora dessa coutada, nada acontecerá. Nem sequer se perceberá que tão grande paixão é essa, e tão prolongada, que alguns de nós (e outros que não somos nós) têm por essa actividade humana tão dúbia, tão dupla, tão ambígua, tão confusa, e ainda assim com tanto "prestígio", e a que se costuma chamar Arte..

Por isso, a partir de agora, tentarei não falar mais em "bens culturais", mantendo a consciência de que os objectos, os produtos artísticos se transformam nisso mesmo, quer queiram quer não.

Também por isto: à Arte (mesmo que neste momento esteja a "andar à roda" e a "olhar para o umbigo") eu posso fazer exigências. Até porque o contacto que tenho com ela é físico. A Arte, antes de ser as outras "coisas" que é ao mesmo tempo, é matéria, material transformado num objecto com estrutura, por ferramentas, que elas próprias são matérias e materiais, transformados também pelas nossas mãos e as nossas cabeças, menos pelos nossos corações, e bastante pelos nossos estômagos. O ser ou não ser Arte joga-se no "concreto". Por isso posso fazer-lhe exigências mais facilmente, que ela cumprirá ou não.

Aos "bens culturais" é que não posso. Só posso olhá-los com a má consciência de quem deles usufrui se quiser, ao contrário de muita e muita gente que, mesmo que quisesse, não poderia. Eles, produtos (e consumos) da "barbárie".

5. Às artes posso fazer exigências. Grandes. Muitas.

E a primeira é que ela me force a "sair do meu quintal". [E é mais uma citação, a 8ª, que faço.] Volto a um Mário Dionísio mais velho, entretanto saído do PCP, depois de 1952, em plena batalha contra o "realismo socialista", numa época em que a resistência à novidade das linguagens era grande, na sociedade e na esquerda mais visível – e nisto pelo menos as duas coincidiam.

"Como apreenderíamos esse algo sempre novo que é a própria arte, se não tentássemos calcar os preconceitos de que somos presa quando vamos ao encontro dela? Se paradoxalmente quiséssemos que a novidade procurada não fosse mais do que aquilo que pretensiosamente julgamos a novidade dever ser? Se recusássemos à novidade o direito de dizer-nos qualquer coisa tão pouco esperada por nós que começamos por censurá-la precisamente por isso? Se, em vez de pedirmos à arte que nos abra constantemente um universo mais, estivéssemos sempre prontos a exigir-lhe que não nos force a sair do nosso quintal?" 8

Época diferente da de hoje. Hoje, aparentemente, a novidade é rainha. Para "apreciar" a "novidade", multidões fazem longas caminhadas, em filas esperam por bilhetes que pagam caro, apinham-se em estádios e outros recintos, admiram então "aquamatrixes" de géneros vários... Mas as constantes "aquamatrixes" que põem à nossa disposição abrem sequer, já nem digo"constantemente", digo uma só vez que seja, um "universo" mais, mesmo quando do "universo" fazem o seu "tema"? (Um tema consensual, entenda-se). Será que as "aquamatrixes" nos forçam a sair do nosso quintal? Não nos levarão simplesmente a sair de casa com o nosso quintal às costas para o colocar juntinho aos outros quintais, em condomínio devidamente administrado?

Renato: como entender à luz desta lógica o circo ou os saltimbancos de outrora? Não será de tentar perceber a importância, ainda que também as limitações de uma actividade cultural?, artística? em que o divertimento é talvez o atributo, campo, mais importante, regressando ao modelo das BDs? Não poderá a magia do circo ou de um espectáculo de puro divertimento, se feito com imaginação e inteligência, ajudar-nos a  abrir as portas para então sairmos do nosso quintal? Não pode o divertimento também contribuir, ainda que de outra forma, para a transformação do mundo? Já sei que me vais dizer que sim, se contiver um olhar crítico; e se se aparentemente limitar a divertir de uma forma inteligente e criativa? E a música que aparentemente só nos acalma, que nos pacifica e nos ajuda a criar condições para podermos então participar na transformação do mundo? Temos de construir um mundo onde haja não só lugar para as grandes obras transformadoras mas também para pequenas coisas que nos ajudam a transformar o mundo e a nós próprios.

Uma coisa julgo saber: "esmagada" pelas "grandes dimensões" das superproduções, das supertécnicas, dos best-sellers e dos prémios, não conseguirei nunca que um universo mais se me abra. Falo do nosso tempo. Talvez sim, talvez não, no tempo das catedrais. Ao exigir à Arte que ela me force a sair do meu quintal, exijo-lhe simultaneamente que ela não me esmague, que não me ponha de boca aberta a olhar para os céus.

É que não lhe exijo só isto, pelo menos à arte minha contemporânea, mesmo sabendo que uma parte dela não tem (ou deixará em breve de ter) A grande e que eu sou incapaz de ver uma outra parte dela, que até pode ser a que venha a ter A grande. Exijo-lhe que, ao abrir-me constantemente esses universos mais, ela me inquiete. Se ela não pode nem quer nem sabe nem se calhar serve para me responder às dúvidas que tenho (ou passo a ter por causa dela), que pelo menos sejam perguntas o que ela me põe. E, de preferência, as mais urgentes, neste tempo de tantas certezas que rejeito. Que, ao existir, abale certezas como estas: que é normal cada um aplicar-se a "safar-se" por si próprio; que quem quer combater pela igualdade será sempre vencido; que quem se "insere" é melhor do que quem não está "inserido", ou seja "adaptado", etc. etc.

Quando o pequeno mundo que tenho próximo parece conformado e adormecido, e aplicado na conciliação do inconciliável, exijo que a Arte seja o contrário da "pacificação".

Entre parênteses: daí as dúvidas que me levantam a chamada "arte pública", uma "certeza de Estado", dúvidas em que estou mais acompanhada do que por vezes julguei. [E aqui entra a 9ª citação, de um autor aqui presente e que volta a ser para aqui chamado:]

"Espaços" novos ou renovados foram de facto arranjados para estender e embelezar o espaço público urbano. Instituíram-se igualmente rituais: celebrações e comemorações, desfiles, feiras e carnavais, exposições e espectáculos ao ar livre, etc. Muita gente para encenar este convívio citadino reencontrado e mais gente ainda para "participar" nele. Mas o "elo social" sai reforçado? A "cidadania" faz parte do encontro? 9

E eu pergunto: E a Arte? Sai reforçada?

É que exijo à Arte mais coisas ainda, sobretudo àquela que se faz ao meu lado, ao meu lado-lugar, ao meu lado-tempo, ao meu lado-ideologia (que há), mesmo que umas décadas depois se venha a descobrir, repito, que não era essa a arte com A grande do meu tempo. Exijo uma Arte que eu possa usar, que eu possa meter, de uma forma ou de outra, naquilo que sou, que passo a ser também porque me encontrei com ela e naquilo que posso imaginar depois, e nas ideias que vou tendo e que vou ter. E, note-se: que nunca terei sozinha.

O título do último solo de João Fiadeiro é: "Aquilo que sou não fui sozinho". [Não é bem a 10ª citação, mas podia ser]

E voltamos à impossibilidade do "óbvio" nas artes, à desconfiança em relação à "emoção fácil" confundida com "êxtase estético", à necessidade de ter dificuldades, à urgência de ultrapassar resistências, à urgência que sinto, perante a Arte que me interessa, de aprender a olhar, a ouvir, a ler. Mais. E de encontrar formas de a usar.

Duvido que a maior parte dos romances do "nouveau roman" sejam "grandes" obras de arte e que se possam comparar à Odisseia. Duvido que as "instalações" do movimento Fluxus sejam "grandes" obras de arte e que se possam comparar ao Beijo do Rodin. O facto é que a mim (e como eu muita gente, mais gente do que se pensa, directa ou indirectamente) puseram-me a ver e a ler de uma outra maneira a arte e a realidade. Fiz "coisas" a partir dessas "coisas". O que, por sinal, não me aconteceu a partir da Odisseia ou do Beijo. Uma coisa é certa: se essas obras não ocupam na lista dos "bens culturais" o mesmo número de ordem da Capela Sixtina ou da Divina Comédia, elas operaram rompimentos (talvez mini-rompimentos). Foram, por sinal, as últimas verdadeiras novidades deste século, e das quais, com consciência ou sem ela de que assim era, mais gente do que se pensa vai vivendo.

Renato: e hoje são também já meros bens culturais? Ou mais uma vez, como referi atrás, permanece neles, porventura não tão visível hoje, essa potencialidade transformadora, essa capacidade catalisadora, se soubermos descobri-la, por detrás da capa plastificada e do laço colorido com que os envolvem?

Entre parênteses: falei de literatura e de artes "visuais". São os terrenos em que me movo. Tenho pouca ou nenhuma formação musical. Aí são-me difíceis os exemplos. E, pior, não consigo ter na música os gostos e fazer as opções correspondentes aos que tenho nas "minhas" artes. Sei que é o que acontece com outra gente em relação às "minhas" artes. Estou numa era de "especialização" por mais que não queira.

Mas sei também que, mesmo sem ter os gostos que "devia" ter, sem fazer as escolhas que "devia" fazer nas artes que percebo mal, consigo estabelecer uma "rede" (que não coincide com a viária, como esclarece o Jourdheuil num artigo recente) com os que exigem isto mesmo de que falei às "suas" artes. Mesmo sem ter visto ou lido ou ouvido o mesmo, e ainda bem. E essa "rede" que é difícil de explicitar (e que o mercado não deixa construir e vai destruindo sobretudo se o deixarmos à solta) entra nas coisas que na Arte (coisas nova num momento) acontecem e que a partir dela se fazem. Essa "rede" que não passa de uma cumplicidade entre objectos muito diferentes e de um vago cruzar de palavras (que às vezes tem a forma de e-mail), é um terreno da esquerda. Mas só se impedirmos que seja uma "terra de ninguém".

Acredito que, mesmo não sendo muitas as pessoas desta "rede" (não são seguramente "todas", como a gente queria, mas poderiam ser mais...) e também não sendo muitas os "objectos", o facto é que (por enquanto) eles existem, graças a algumas teimosias, colectivas e individuais. Dispersos. Mas provavelmente mexem mais no mundo, mesmo que de forma quase invisível, porque é a partir da Arte que trabalham, do que os milhões que em milhares de estádios se apinham para assistir ao mega-concerto do século. Ou os milhares que se perfilam para ouvir Pavarotti.

6. Na era da reprodução técnica

Não tenho estado, evidentemente, a falar da Arte "toda", de todos os tempos, nem sei sequer se é possível e útil pensar assim. Estou a falar das obras de arte dum tempo que começou há pouco mais de um século e que é ainda o nosso, com todas as mudanças "profundas" (e outras menos profundas) que terá sofrido entretanto. Um segundo pressuposto que explicito agora. E é ainda Walter Benjamim que vou buscar, aquele que agora fala de Arte-mesmo.

"Por princípio a obra de arte foi sempre reprodutível. Mas essa reprodução não foi sempre técnica"10 – assim começa o ensaio de que me socorro agora.[10ª citação]

Estamos – pelo menos desde o nascimento da fotografia - na era da "reprodutibilidade técnica" da Arte, em que "a obra de arte reproduzida se torna cada vez mais a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade".

E é da arte nascida nesta era e conhecida nesta era que conseguimos falar. Não conhecemos outra. É quase só de reproduções que falamos, quando falamos de Arte. E a "reprodutibilidade técnica" possível gera ela própria "sentidos". Determina não só os modos de produção e o uso, mas a "obra em si": características materiais, estruturas, linguagens...

O objecto de arte não reproduzido é uma excepção na arte que conhecemos, com a qual vivemos, da qual alguns vivem. E que perversa excepção. Difícil de manejar. Com fortíssima tendência para "bem cultural". Ou mesmo para bem "bem comercial", móvel ou imóvel, com muito valor de mercado (nalguns casos) e pouco valor de uso geralmente: que fazer com esses objectos que uma vez foram únicos, os chamados "originais", nas artes que os têm?

Em 1945, Picasso podia responder (depressa e bem) a esta pergunta, enquanto respondia, no fundo, a outra [E é a minha 11ª citação]:

"A pintura não foi feita para decorar apartamentos. É um instrumento para a guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo." 11

Renato: não deixa de ser irónico ter sido o Picasso a dizer isto. Hoje qualquer magnata gostaria de ter um Picasso original, sublinho original, a decorar o seu apartamento! Já volto à questão do original.

Hoje, por mais fascinante que seja esta frase, é impossível não perguntarmos quem é o inimigo. E como se combate um inimigo com pintura. No concreto.

São provavelmente outras as questões mais prementes que a Arte da era da reprodutibilidade técnica nos põe. E o discurso sobre arte e sobre política, mesmo quando as identifica, lida dificilmente com elas. E também nós, no nosso quotidiano, das poucas vezes que ele se cruza com a arte. Fazemos como se não estivéssemos nesta era da "reprodutibilidade", como se arte não tivesse de facto mudado, como se a sua relação com o mercado e, portanto, com a "utopia", não fosse outra:

Em 1963, Vaneigem e outros descreviam assim o panorama da produção artística [ e é a 12ª citação]

"A própria multiplicação de pretensas correntes artísticas que nada distingue umas das outras, constitui a bem dizer uma aplicação dos princípios da venda moderna do mesmo produto através de marcas rivais." 12

Em 1979, Jourdheuil propunha que se opusesse o valor de uso ao valor de mercado [e é uma 13ª citação].

"À concepção a partir de agora muito difundida e largamente interiorizada da arte como mercadoria e do pensamento como valor de troca, convém, mais do que nunca, opor a concepção primária da arte e do pensamento como produções de valores de uso. [] Para lá da legenda, para lá do comentário (jornalístico ou outro) que dita regras de consumo, opor o uso, pelo facto de ser rebelde ao útil, opor a prática artística como grau zero do paradoxo." 13

Em 1998, num texto sobre futebol, Jean-Marie Brohm e Marc Perelman falam do "uso" que damos à Gioconda [e é a 14ª citação]:

"Do ponto de vista da descoberta de uma obra, pode-se, sob forma de turismo artístico, contemplar A Gioconda no Louvre. Mas esta esvaziou-se de qualquer substracto utópico a partir do momento em que cada um pode possui-la na sua banca de cabeceira." 14

Se os problemas são (entre outros) estes, se com eles estamos a um passo de nos atolarmos outra vez na arte como "bem cultural" - domínio de que eu quis fugir, tudo nos conduz a pensar que, de facto, o modo de produção e o valor de uso têm mais peso do que nos querem fazer querer na Arte hoje produzida (reproduzida), nas nossas escolhas do presente e do passado e no nosso trabalho - que é muito um remar contra a maré.

Julgo que há modos de produção que interessam a uma cultura de esquerda e outros que interessam menos ou não interessam nada. Há obras que têm e outras que não têm um valor de uso. E nem todas têm o mesmo. Umas tiveram e deixaram de ter. Outras não tiveram e passaram a ter. E podem não ser as de melhor "qualidade" que têm mais "valor de uso".(Mas o que é isso de "qualidade"? Que critério é esse e quem o define?)

Às vezes, percebo porque é que não gosto especialmente (ou não gosto mesmo) de obras que estão cotadíssimas na "bolsa dos gostos". Muitas vezes é uma conversa de passagem que me dá a resposta e, outras vezes, o contacto com outras obras mais desconhecidas. E acabo quase sempre por ir parar aos "modos de produção" da obra e ao (não) "valor de uso" que o objecto tinha "escondidos" e que depois passa a mostrar com mais evidência: características físicas, estrutura, linguagem, ponto de vista.

Aconteceu-me isso com o Sebastião Salgado, por exemplo. Olho aquelas imagens que acho belas, mas não sei o que posso fazer com elas.

São imagens que não me mostram mais mundo que eu já sei, ou julgo saber, mesmo se não vi nunca a realidade que me mostram. São imagens muitas vezes de exploração, de injustiça, o seu autor faz do combate à injustiça e à exploração uma causa, o que deveria ser suficiente para me "contentar". E "contenta". Mas aquelas imagens que poderíamos dizer perfeitas (não só tecnicamente) não me inquietam mais do que eu já estava. Provavelmente, o contexto em que as posso ver – álbuns de luxo, muito cuidados e caros, pavilhões de exposições universais que comemoram descobrimentos, centro culturais do Estado -, ao contradizer bastante as realidades que os produtos parecem querer denunciar (e contra as quais nos querem indignar) não facilitam que eu me aproprie dessas imagens, que lhes dê um "valor de uso" eventualmente correspondente. E também (ou sobretudo) o modo como são "produzidas", a "máquina" que foi preciso montar para que elas sejam o que são e para aparecerem assim no "mercado", para se "imporem" e gerarem um consenso em torno delas, repercute-se também na importância da "técnica" (onde entram tecnologias, gestão, marketing) que não tem o olhar e a "alma", a ideologia, daquele que enquadra e dispara. E provavelmente ilumina.

Renato: a questão que eu coloco relativamente às fotografias do Salgado não é o seu modo de produção ou valor de uso - ele até clama que elas contribuem para apoiar movimentos justos de transformação do mundo como o dos Sem-Terra no Brasil e eu não tenho razões para não acreditar, aliás já o ouvi e é curioso que achei as suas palavras bastante mais mobilizadoras que as suas imagens o que também é um dado curioso e porventura significativo - mas muito mais aquilo que essas imagens despertam em mim: o facto de me emocionarem esteticamente, ou seja, eu ficar maravilhado perante alguém que sofre, que tem fome! É isso que me perturba, essa beleza do horrível, essa plasticidade da miséria, da fome! Claro que misturar os Sem-Terra com o Centro Cultural de Belém ou outras instituições do género poderá ser polémico pela sua ambiguidade, mas que fazer quando, como tu citaste: "Já há muito tempo que a arte de vanguarda, mesmo a mais "revolucionária", deixou de meter medo a quem quer que seja..." pode por isso entrar em qualquer Centro Cultural que se preze.

E a este meu outro olhar, entre o indiferente e o desconfiado, sobre estas imagens de "qualidade" incontestável e de intenções mais que louváveis, feitas por quem indubitavelmente aprendeu a fazer imagens que falam, não é estranha a comparação subterrânea que estabeleço com um outro fotógrafo, muito menos conhecido e muito menos louvado, de origem camponesa, que fotografa com máquinas emprestadas, sobretudo habitantes de aldeias, vilas e pequenas cidades de Itália, aqueles que conhece, aqueles com quem vive, preocupado não em "homenageá-los" como acontece quando se vê de fora, mas em torná-los "protagonistas". Da História. É um trabalho de "narrador" que ele faz com a fotografia, como alguém disse. E tudo coincide: o modo de produção, as fotografias, o que delas se pode fazer. Como obras de arte, digo. John Berger chama-lhe "génio". "Muito parecidas connosco, mostram-nos o mundo", diz. O mundo que eu não conhecia antes de me ter posto a olhar para elas. Nem o fotografado conhecia. Nem o fotógrafo. Abriu-se um universo mais. Inquietante. E a partir dali, aquelas imagens entram no que eu penso, no que eu sou, no que eu faço. E passo a ser muito mais um "nós" – o que eu sou não sou sozinha.

 

7. As obras que "pegam"

Sim, desconfio de qualquer best-seller. Que não precisa, para essa desconfiança que tenho, de atingir milhões. Não por "elitismo". Nem por desprezar em absoluto o gosto das "massas". Nem por defender que só é arte o que é (ou começa por ser) "maldito". Mas porque o best-seller se fabrica na aceitação e glorificação dum esquema mercantil, que não se limita, aliás, a utilizar a técnica de impingir um "produto" chamada marketing, mas que é a própria "composição" do produto. Composição, digo. Que deveria figurar na capa do livro ou do CD como nas embalagens de puré de batata, de sumos, de molho tomate, com essa infindável lista de conservantes, emulsionantes e edulcorantes: E 312. E305, etc.

Renato: eu acho bem desconfiar, mas não só dos best-sellers, mas de tudo! Estar à partida de pé atrás e com o sentido crítico desperto para tudo. Dito como tu dizes poderá parecer não sentido crítico mas já talvez sectarismo. É verdade que muitos dos best-sellers são o que tu dizes que são, mas será sempre assim? Como classificas tu então por exemplo o Mia Couto que, à nossa dimensão, não deixa de ser um best-seller? Aliás qualquer obra que contribua de facto para a transformação do mundo evolui naturalmente em determinado momento para a condição de best-seller. Será no momento em que se transforma em bem cultural? Ou melhor, em que o atributo bem cultural se torna dominante, se aceitarmos o modelo do equilíbrio instável Arte/Bem Cultural? Será isso que nos deverá levar a desconfiar ainda mais dos best-sellers imediatos? Mas mesmo nesse caso que dizer mais uma vez da obra do Mia, que se transformou quase imediatamente num best-seller e que tem, quanto a mim, claramente a inovação, a criatividade e inclusive o valor de uso, que tu tanto aprecias, para poder pertencer à tal Arte que procuramos?

Se for alguma vez "arte" – mesmo a que não me interessa – aquilo que um dia foi best-seller sê-lo á sempre "apesar de". É no "lugar comum", por muita originalidade que aparente, que o best-seller se faz. E na cumplicidade com os gostos difusos, largamente difundidos e que difunde, que são os daqueles para quem o desejo de "transformar" o mundo é estranho. Gosto "dominante", dizia-se antigamente, quando ele parecia só um e não se tinha "especializado" ao sabor do "mercado".

A lógica do best-seller (mesmo inconsciente, mesmo frustrado) tratou de uniformizar os "projectos" dos artistas. Curiosamente no momento em que as "escolas" já não existem ou têm tão pouco prestígio, produzem-se objectos sem os parentescos que essas "escolas" davam, mas com a reduzida diversidade que a respiração acrítica do "ar do tempo" dá.

Nos últimos anos – talvez se esteja a dar uma mudança – a literatura (e não se passará o mesmo nas outras artes?), a literatura "prestigiada" – que se faz, ou que se repesca dum passado mais ou menos recente ou de outras zonas geográficas -, os produtos literários com direito a serem "consumidos", fizeram-se de preferência com três ingredientes que aparecem ou não reunidos e cuja utilização garante o consumo: o mito da História, o mito do Fantástico, o mito da Técnica. Honra à tendência "remake"...

São os romances "históricos" que não pensam a História mas que se aplicam a reconstituir factos, costumes e vidas privadas. São os contos fantásticos ("ficção científica" incluída) com o desprezo ostentado por essa coisa mesquinha dos quotidianos – vulgares ou invulgares - e que dão à "imaginação", à "nuvem", o poder único (que se recusa aos homens) de construir a felicidade, regra geral "individual", o que quer sempre dizer "sentimental". São as poesias e prosas com a "mestria" da escrita à boca de cena, uma "escrita" que existe não para, ao ser trabalhada, dizer o mundo mas para que reconheçamos nela o valor (de mercado) do autor. Diz-se então: "seja como for, está muito bem escrito", o que é aliás mais fácil de "fazer passar" quando anteriormente outros já escreveram da mesma maneira. Ou: está muito bem pintado.

Entre parênteses: o prestígio súbito e o consenso gerado em volta da Paula Rego na sua nova fase – ela que já tinha pintado, e muito, mas outras coisas – é da confluência destes três mitos que nasce: imagens que vêm de um longínquo passado (infantil e literário) que se transformam na tela em "fantásticas" por justaposição (o real não merece o "artista", as imagens do sonho, sim...) com uma "técnica" de pintar que se aproxima, essa sim, da "realista". Há rugas nas caras, há sombras nos tecidos, há "imitação" da realidade, que foi o que, de uma maneira geral, os séculos anteriores pediram ao pintor: que soubesse as técnicas que fizesse parecer "vivas" as imagens pintadas. É uma pintura que pode incomodar pelo "horror" que põe em cena (e não há filmes de "terror" entre os best-sellers"?) mas essa "maneira de pintar" a mim não me incomoda nem me inquieta. Retoma a tradição da "mão direita".

Ora, o que a Arte neste mundo tem para fazer não é, se é do mundo que se trata e da sua transformação, mostrar o domínio da "mão direita" e exercitar-se a aperfeiçoá-lo até aos limites (há provavelmente máquinas que o fariam então melhor), mas aproveitar - e para dizer "coisas difíceis" que só passam a existir depois de serem ditas (não é isso a afinal a Arte?) - tudo o que de "mal feito" uma mão esquerda sabe fazer.

Renato: é curioso utilizares aqui o exemplo da Paula Rego em que o domínio da mão direita não é nada evidente para mim. Eu já nem sequer mencionaria o Medina como exemplo, por ser demasiado óbvio, mas ousaria por exemplo o Molder ou mesmo o próprio Salgado. Talvez seja esta perfeição, típica da mão direita, que explica em parte a minha perplexidade e a minha perturbação perante as suas imagens!

E aqui regresso ao velho e esquecido Focillon [e é a minha 15ª citação]:

"Não acredito absolutamente nada na eminente dignidade da mão direita. Se a esquerda lhe faltar, entra numa solidão penosa e quase estéril. A esquerda, essa mão que designa injustamente o lado mau da vida, a porção sinistra do espaço, aquela onde não se deve encontrar o morto, o inimigo ou o pássaro, é capaz de se treinar para cumprir todos os deveres da outra. Construída como a outra, tem as mesmas aptidões, às quais renuncia para a ajudar. [...] É uma felicidade não termos duas mãos direitas. Como se repartiria a diversidade das tarefas? [...] Teríamos talvez levado até ao extremo limite a arte dos malabaristas – e provavelmente mais nada." E falando de Gauguin: "Este homem de sentidos subtis combate essa mesma subtileza para restituir às artes a qualidade intensa, que eles afogaram nos tons finos, et, com um mesmo movimento, a sua mão direita desembaraça-se de qualquer destreza, aprende com a mão esquerda aquela inocência que nunca se adianta à forma: menos cansada do que a outra, menos perita em virtuosismos automáticos, caminha com lentidão e respeito ao longo dos contornos dos seres" 15

Só aqui tem entrada o "acidente", o "acaso". E não é dele que a Arte, terreno anti-determinista por excelência, também se faz? E a novidade. E a esperança.

Renato: concordo plenamente, apenas chamo a atenção que muitas vezes este "acidente", "acaso", se opõe de certa forma ao valor de uso, pelo menos ao valor de uso planeado, determinado à partida. Esse valor de uso poderá surgir depois, como resultado de muitas coisas entre elas a vontade do artista de transformar o mundo e do acaso em que tropeçou.

O que me interessa na Arte (hoje, talvez não amanhã) é poder ser a contradição e a dúvida transformada em objecto. E é para a expressão da contradição e da dúvida que o "canhestro" da mão esquerda serve. E, sem querer fazer jogos de palavras, parece-me que é também aí que a Esquerda – passo para a política - poderia estar em vantagem. Habituada que foi (ou habituada que estava) a lidar com contradições.

Mas não é de todas as contradições que poderemos retirar vantagens. Por exemplo, julgo que nos servem para pouco os "opostos" entre os quais, de um modo geral, o "pensamento sobre arte" se tem movido, seja o "dos livros", seja o dos "sistemas políticos", seja o de cada um de nós: "massas" e "elite"; "amador" e "profissional" (identificado com "qualidade"); "útil" e "inútil"; "erudito" e "popular", etc. (e já nem falo do oposto "forma"-"conteúdo", de que atrás me ocupei...)

Depois de tomarmos partido por uma destas palavras "contra" a sua contrária ou de tentarmos conciliá-las nas eternas respostas às eternas perguntas do "quem", "para quem", "para quê" e "como", ficaremos tão descalços como estávamos antes.

Hoje, a "contradição" que me pode levar a tomar partido por uma Arte contra outra, a insistir que há (ou pode haver) uma Arte de esquerda (mesmo quando não foi feita para isso), o que neste momento me leva a separar o conceito de Arte do de Cultura para me ser mais fácil pensar numa "Cultura de Esquerda", está na forma como a Arte entra (ou pode entrar, ou é bom que entre) na "vida de todos os dias de toda a gente".

Essa contradição tento formulá-la assim (e prefiro "contradição" a "utopia"): por um lado, querermos transformar a Arte em parte "normal" das nossas vidas (de todas as vidas), fazê-la portanto entrar numa "rotina", de toda a gente (que assim adquiriria ferramentas que só alguns neste momento têm, diminuindo assim o seu estatuto de "dominados"), torná-la necessária à própria "sobrevivência" de toda a gente (que passaria a precisar dela "como de pão para boca" ), o que quer dizer "banalizar a arte"; e por outro lado, sabermos que ela vale sempre como "excepção", que só enquanto "momento especial" e objecto "diferente" ela serve para alguma coisa, é "arte", abre os tais "universos mais", "inquieta", põe a pensar, junta, opõe, cria...

Uma contradição visível no famoso "decreto" de gente muito "especial" num momento "especial" em que a vontade era estar "com toda a gente" [16ª citação]:

"Convocam-se os pintores e escultores a pegar imediatamente nas suas latas de tinta e a iluminar, a pintar com os pincéis da sua arte, cobrindo de desenhos as ancas, a testa e o peito das cidades, das estações e das manadas dos vagões dos comboios eternamente em fuga."

É Maiakovski, Burliuk e Xamenski que assinam. Estamos em 1918.

Renato: é Joseph Beuys? "Jeder Mensch ist ein Künstler" clama ele, ou seja "Cada pessoa é um artista". Estamos nos anos sessenta.

Esta é a contradição (nunca resolvida) dentro da qual se moveram as grandes obras de arte e os grandes rompimentos artísticos da "era da reprodutibilidade técnica", mesmo quando não explicitam essa sua precária situação.

Pensando assim, poderíamos então olhar finalmente, não como historiadores ou especialistas, mas como pessoas, para futurismos, dadaísmos, surrealismos, bauhaus, artes de rua, etc. etc., e fazer a "conta-corrente" da "banalização" e da "provocação" nestes projectos e nestas práticas, o balanço entre "desintegração" e "integração", perceber como todos morreram às mãos dos museus e da salvação do património, dos hipermercados, das lojas dos 300, das indústrias cerâmicas e têxteis, da publicidade, das associações e autarquias mais a sua "animação cultural". Mas perceber também como não "morreram" por causa disso mesmo. E por que precisamos deles para continuar.

Entre parênteses: talvez essa entrada da Arte no quotidiano e na "rotina" tenha a ver com aprendizagens, com "formação" – escolar e não escolar, inicial e contínua. O acesso à "prática das artes" conta, e muito. O "convívio" com os "clássicos" e os menos clássicos entra aqui também. Essa "formação", uma questão social, é uma questão política. De projecto de sociedade. E não é disso que temos estado a falar desde o princípio afinal? O poder de "rompimento" da Arte passa também por lhe exigir aquilo que ela hoje tem dificuldade em "fornecer". É uma questão social. É uma questão política.

E esta é uma contradição que talvez não sirva para ser resolvida mas apenas para ser explicitada. As obras de Arte de hoje que mais me interessam são as que claramente têm dentro esta contradição dentro e que trabalham com ela.

Renato: a obra de arte que não tem dentro qualquer contradição, que existe fora do conflito e da mudança, dificilmente será uma obra de arte e percebo que tu estejas particularmente sensibilizada para esta contradição, mas não creio que se possa afirmar que é mais importante do que outras no abstracto. 

8. A Arte como incoincidência

O que torna a Arte (pelo menos a que me interessa) como o terreno privilegiado da incerteza e da incoincidência. Daí as más relações que os políticos têm com ela. E os políticos de esquerda tanto ou mais do que os de direita.(Falo de Arte não falo de "bens culturais"). Daí a dificuldade de ligar hoje com a mesma facilidade de ontem Arte e Política.

Renato: achas que ainda hoje é assim? Já não acreditas na citação que fizeste e que repito: "Já há muito tempo que a arte de vanguarda, mesmo a mais "revolucionária", deixou de meter medo a quem quer que seja." Hoje curiosamente os políticos parecem conviver perfeitamente com qualquer forma de arte e os artistas com qualquer político e curiosamente até por vezes com políticos de quadrantes aparentemente opostos!

[E é a 17ª citação, regresso a Mário Dionísio:]

"O artista é o primeiro a pronunciar uma palavra que, por mais desejada, por mais sonhada, por mais latente, nunca ninguém tinha ouvido antes e não é nunca absolutamente igual ao que se poderia imaginar quando apenas flutuava no sonho. Não há grande artista que não seja, no campo da visão um revolucionário". 16

Tenho usado pouca a palavra "artista", a palavra "autor", o que tentarei explicar daqui a pouco. Em todo o caso, há momentos em que essas palavras nos fazem falta, nem que seja para nomear os "responsáveis" imediatos desta conversa toda.

Nem que seja quando surge – e aqui ela vem a propósito - aquela inevitável pergunta que cada vez menos se nos põe: como é que é possível eu gostar da arte feita por aquele "reaccionário"? como é que eu posso admitir que aquele "conservador" seja um artista, se entendo que o "artista" é de algum modo um "revolucionário"? Tudo aquilo de que tentei convencer-me não cairá então pela base? É o que acontece se se responder que é "natural" porque a "arte é outra coisa", resposta frequente, mais oral do que escrita.

"No campo da visão" – diz Mário Dionísio. E a questão passa a ser: como é que o se fabrica no campo da "arte" pode não coincidir com o que se pensa ou se faz no resto, no quotidiano, na política? A arte é o terreno da incoincidência, repito. Mas isso chegará?

Provavelmente, é sobretudo a maneira como vivem o seu tempo, a relação que vão construindo com ele (e não a sua própria vida entendida como "biografia" privada ou pública) que acaba por determinar que os artistas são "grandes". É talvez essa relação que faz com que os seus "produtos" venham a ser considerados "grandes", pelo menos num momento, que estas coisas variam... E, alguns, para alguns, "revolucionários".

Provavelmente nenhum "grande" artista esteve plenamente contente com o seu tempo. Ou seja não "coincidiu" com ele. Isto de muitas maneiras. Uma delas, a mais simples, é ter o desejo de um "mundo" ainda menos igualitário do que ele é... A esses costumamos chamar-lhes "reaccionários". Mas também para estes, os "desejos" não coincidem com o mundo do momento, o que acontece mas de outro modo com os "reformistas" e os "revolucionários". Penso que é mais fácil um "reaccionário" ser "artista" do que um "conservador". A incoincidência é pelo menos um motor.

Entre parênteses: será que alguém que se contenta com o seu tempo é capaz sequer de "descobrir" o mundo, de ter vontade de fazer "coisas" a partir dele, que são elas próprias pequenos mundos? Mesmo que lhe tenham ensinado a fazer "bem" e que tenha aprendido "bem", a fazer objectos tecnicamente "perfeitos", não estará aí a "grande" Arte, a do "visionário". Aos coincidentes com o seu tempo é difícil ser artista. Tanto assim é que as epopeias são poucas. Nem Homero-homem existiu se calhar. Os Lusíadas tem a forma de uma epopeia, sim. Mas alguma vez foi um recado a um rei poderia ser uma "epopeia", aquela expressão de coincidência do "artista" com o mundo de que às vezes temos saudades?

Não é fácil os tais "grandes" artistas saírem, penso eu, das coortes que viram (ou julgam ter visto) o seu "ideal cumprido", daqueles que "cumpriram o seu ideal", ou daqueles que se adaptaram à ideia de que ele nunca o será, ou que, tendo sido mais ou menos um dia, não mais voltará a sê-lo. Sobretudo quando são capazes de dar a esse "ideal" o nome de um sistema político. É que ao fazê-lo, deixam de ter uma relação com o seu tempo simultaneamente realista e visionária, que é uma exigência que a Arte lhes faz.

Entre parênteses: é também por isto, e não só pelo modo de produção ser o do best-seller e pelo valor de mercado se sobrepor nele ao valor de uso, que duvido que o Prémio Nóbel português se aguente como "grande artista" muitos séculos.

Em todo o caso, talvez não sejam hoje estas as incoincidências mais inquietantes e portanto mais "produtivas". Mas estas: gostarmos (apesar de numa maneira geral não gostarmos do Estaline) da pintura da Frida Khalo que se pinta a si com o dito ostensivamente em pano de fundo, muito maior do que ela, claro; e gostarmos "nós" e gostarem "eles". Digo isto, quando passou a ser considerada unanimemente uma "grande" artista por todas as instituições culturais e/ou comerciais que imperam no mundo.

Sobre as incoincidências da Frida Khalo com o seu tempo não restarão muitas dúvidas. Provavelmente foram mesmo essas incoincidências que a fizeram (e a grande parte dos artistas) "refugiar-se" na Arte. Mas esse "refúgio" não significa "fuga". Para esses, será sempre do mundo que se trata. E muitas vezes de um "ajuste de contas" com o seu tempo. As formas de o fazer são muito variadas. Implicam a escolha de "modos de produção", que não interessarão da mesma maneira às várias pessoas e às várias políticas. Resultam deles, ou não, um "valor de uso". ,

O que me parece "trágico" é que hoje os artistas se obriguem, de uma forma ou de outra, a coincidir com o seu tempo. O que tem alguma coisa de "amputação". Um dos meios que encontram, como os "não-artistas", é a divisão da vida às fatias: a privada, a política, a artística - a artística "pura", a artística da "sobrevivência", etc.

Este trabalho (porque é um trabalho) de fazer coincidir os artistas com o seu tempo tem mesmo "especialistas": os "mediadores", intermediários vários que vão dos "comissários" aos "gestores de projectos". O que não quer dizer que muitas vezes no mesmo corpo não caiba o "mediador" e o "artista"...

É que esse trabalho de "gestão das artes" tem também a sua parte de "utopia": fazer nascer no mundo a "necessidade da arte", através dum aumento quantitativo e qualitativo da "oferta". Assim se vão multiplicando os museus, e são agradáveis, sim senhor; e já não é possível ver teatro no desconforto de uma bancada... Trata-se de fazer com que a "oferta" cultural seja "confortável". Trata-se de convencer o mundo de que a "arte" lhe faz falta. Mas para que lhe faz falta uma "Arte" assim "oferecida"? Para "mudar o mundo" é que não, certamente.

Aliás, voltámos, sem dar por isso, aos "bens culturais". É de "mercado cultural" que me pus a falar, daquele campo em que mais importante do que as obras parece aquele modo de reprodução (e reprodução) que as torna "consumíveis", em que o valor dos objectos não é o "de uso", mas "de mercado".

E o que vale a pena perceber é que também de "incoincidências" o mercado cultural se faz e a partir delas se desenvolve: da incoincidência do pensamento político com os "gostos artísticos" (na sociedade e em cada um de nós); e também da incoincidência dos "gostos" nas várias artes para cada um de nós. Se as "margens" são um mercado é porque uma parte das "massas" as quer, ao mesmo tempo que as "margens" e as "elites" se adaptaram aos "produtos de massas". É assim que o grande mercado da "inutilidade" – a Arte - passa a ter a maior utilidade política do mundo.

 

9. Finalmente, o autor

E é neste "mercado" que nos aparece o Autor. E só agora, e para acabar, chego ao meu terceiro pressuposto: que nada feito nesta tentativa de separar as águas - da Cultura e da Arte, da Arte e da não Arte, da parte da Arte que interessa à Esquerda - se não nos atrevermos a questionar o próprio conceito de autor.

Faço mais uma montagem de 3 citações e talvez baste para se entender que falando de Autor, do seu estatuto, poderes e não poderes, é de Arte ainda que se está a falar, dos seus modos de produção, do seu valor de uso.

Primeira transcrição [a 18ª que faço] - dum artigo publicado num jornal nem por isso muito radical, o Monde Diplomatique:

"O artista limita-se a apropriar-se de materiais artísticos que fazem parte do domínio público. Será possível imaginar um poema criado sem poemas anteriores?" ... "É difícil aspirar à "originalidade" absoluta; a noção de autor é um conceito equívoco e romântico [...] A vida artística seria bem mais rica se abandonasse o sistema de direitos de autor. Esta afirmação pode parecer surpreendente, mas examinem-se os argumentos e considere-se o que seria a criação se estivesse liberta da propriedade exclusiva da meia-dúzia de empresas que actualmente detêm esses direitos. O conhecimento e a criatividade poderiam voltar a ser um elemento essencial do domínio público. E o abandono do direito de autor não impediria os artistas (tanto a Ocidente como no Terceiro Mundo) de ganharem a vida decentemente" 17

A citação seguinte [a 19ª] é tirada de uma folha policopiada em que Ferruccio Brugnaro, operário italiano, conta como um dia se pôs a escrever poesia e a divulgá-la:

"Lembro-me das distribuições [dos meus poemas] nas grandes manifestações operárias, nos piquetes, nas assembleias… Suscitavam sempre muito interesse e provocavam também intensas discussões. Um operário que escrevia poesia… Havia uma mistura de espanto e de orgulho nos meus camaradas."

E acrescenta:

"Há quem tenha feito uma moda, depois abandonada, da comunicação através do copiógrafo, do cartaz, da fotocópia, do fax. Para mim nunca foi uma moda."

E a terceira [a 20ª que hoje faço] está numa entrevista de Heiner Müller de 1979:

"Enquanto a literatura se fundar na violência e o exercício da arte em privilégios, as obras de arte terão tendência a ser prisões, as obras-primas cúmplices do poder. Os grandes textos deste século trabalham para a liquidação da sua autonomia, que é o produto da sua fornicação com a propriedade privada, para a expropriação e por fim para o desaparecimento do autor. O que fica é o que é fugitivo. Só aquilo que fugir é que fica."

Renato: as questões de autoria também são questões sobre as quais tenho reflectido sem conseguir chegar muitas vezes a conclusões definitivas. Por um lado estou de acordo contigo no que diz respeito aos direitos de autor, mas por outro lado como proteger um autor de alguém que pretenda fazer dinheiro à custa do seu trabalho, porventura deformando-o, deturpando-o? Outra questão tem a ver com o conceito de original ou de obra única que aparentemente só faz sentido no contexto da arte-mercadoria e da arte-investimento? Este problema que se coloca quase exclusivamente nas artes plásticas parece ser, se esquecermos o valor da obra como investimento, um contra-senso. Qual o problema de repetir uma obra vezes sem conta desde que a repetição seja perfeita? A obra não é a mesma, as ideias que encerra não são as mesmas? E se quem a tem não souber que outras exactamente iguais existem? Muda alguma coisa? Como perceber esta questão nas Artes Plásticas, quando não existe na literatura ou na música, para mais hoje, uma era de "reprodutibilidade técnica"? Faz algum sentido numerar e assinar fotografias ou serigrafias, como eu já fiz, e a Abril em Maio também faz? A numeração faz sentido à margem da tal arte como bem de investimento? Mas, por outro lado, os artistas plásticos criam para vender e vivem disso. Até o Van Gogh, que desgraçadamente não vendeu nada a não ser, creio eu, um ou dois quadros ao seu próprio irmão! Qual a alternativa? Esta é mais uma das contradições a explorar: a autoria e o original! Por um lado vivemos na era da reprodução por outro ainda se sobrevaloriza o original de arte!

10. Para acabar

Julgo que é este o campo de trabalho privilegiado da Esquerda, nestas histórias de Cultura, e não a invenção de "políticas culturais" ininventáveis, tarefa que não estou sequer certa que lhe diga respeito.

Trata-se, também aqui, de uma recomeço. Se nos quisermos munir contra "o inimigo" (como diria Picasso) e se quisermos que a Arte nos sirva nisso para qualquer coisa, temos de colocar ao centro, no trato com as Artes, as questões do modo de produção e do valor de uso. Vendo claro. Ou seja: 1º) não escondendo que "qualquer documento de cultura é um documento de barbárie", 2º) não menorizando o facto de as artes que conhecemos e praticamos serem as duma era de "reprodutibilidade técnica", 3º) admitindo que "a vida artística seria bem mais rica se abandonasse o sistema de direitos de autor."

Só este trabalho permitirá uma crítica útil às políticas culturais existentes. E que o próprio fazer da crítica (e da Arte) entre nas nossas vidas.

Renato: parece-me ser o momento de afirmar aquilo que hoje me parece fundamental e que me parece estar de acordo no essencial com alguma coisa do que dizes. Para mim, hoje o mais importante, é criar as condições necessárias para sermos capazes de distinguir o trigo do joio. A arte, e em particular as artes plásticas, criaram as condições ideais para fazer passar gato por lebre, para produzir autênticos bluffs! São os comissários, os críticos, os órgãos de comunicação, as instituições oficiais, os programadores políticos, desculpa culturais, e os artistas, estes sem qualquer capacidade de afirmação fora do circuito das galerias, dos subsídios, das bienais, dos centros culturais... E perante aquilo que parece bluff ninguém tem a coragem de apontar o dedo e de gritar  "O rei vai nu!". Perante muitos projectos que visito e que me parecem bluffs, se pergunto a alguém qual a sua opinião (eu próprio?), começa normalmente por dizer que bem, talvez, até conseguir afirmar inequivocamente que de facto não gostou e depois, muito a custo, talvez hesitar e constatar que poderá ser um bluff... Que dizer de projectos que não parecem nada e que depois das explicações herméticas, por vezes sem sentido, outras vezes delirantes, de um crítico, porventura promovido a comissário, continuam a não parecer nada? Nada de nada! Poderá ser uma obra de arte assim tão difícil, complicada? Por tudo isto o que me parece mais urgente é criar um movimento a que se poderia precisamente chamar " O rei vai nu!": criar as condições para qualquer pessoa ter a coragem de procurar ver se de facto o Rei vai Nu ou não, e deixar de ter medo de nomear aquilo que lhes é apresentado com o peso institucional como bluff. Qual o critério? Voltando ao modelo da Arte como uma BD com diversos atributos ou campos, que cada obra de arte tenha pelo menos um desses atributos claramente preenchido, qualquer que ele seja! Que seja criativa, original, imaginativa, provocatória, com valor de uso para a transformação do mundo, etc, já ficaria satisfeito se pelo menos um desses campos fosse perceptível. Trata-se de acabar com os consensos vazios, por iniciar a separação das águas, como tu dizes, não tanto entre direita e esquerda, mas entre aquilo que é e não é um bluff! Claro que depois nada tenho contra a tentativa de clarificação e de separação das águas também entre direita e esquerda, embora não saiba bem muitas vezes como fazê-lo, perante aquilo que tu própria constatas e que também é patente na contribuição do Garnier. Tu própria questionas "E como se combate um inimigo com pintura. No concreto? " e não chegas a dar a resposta! 

Termino com o que o Jorge Silva Melo, de quem falei ao princípio, a propósito de "travellings de direita e de esquerda", afirmou há tempos: [e é a minha última citação, a 21ª]:

"O mundo também mudou e não basta fazer troça: há que saber (e é esse um dos fascínios de uma arte da actualidade e de uma produção necessariamente cínica como será sempre a do teatro) quais as respostas mais activas, mais perspicazes, mais agudas, mais contraditórias para as novas perguntas que hoje em dia se nos põem».18

É muito difícil. Mais difícil ainda fora do "teatro" que ajuda a ser "cínico". Mas se não fosse difícil, para que é que servia este edifício?

 

1 Jean Jourdheuil, Le théâtre, l’artiste, l’état, 1979

2 Carta de Princípios da Abril em Maio, 1994

3 Mário Dionísio, "Necessidade de ver claro", in Sol Nascente, 15 de Março de1938

4 Walter Benjamim, Teses sobre a Filosofia da História, 1940

5 Jean-Pierre Garnier, La Bourse ou la Ville, 1997

6 Jean Jourdheuil, Le théâtre, l’artiste, l’état. 1979

7 Ben(jamin Vautier), Mais qui est Ben?, http://www.esf.ch/ben/ego3.html

8 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, Vol I, 1956

9 Jean-Pierre Garnier, La Bourse ou la Ville, 1997

10 Walter Benjamim, A Obra de Arte na Era da sua reprodutibilidade técnica, 1936-1939

11 Picasso, entrevista de 1945.

12 J.V. Martin, J. Strijbosch, R. Vaneigem, R. Viénet, resposta a um inquérito do Centro de Arte Socioexperimental, 1963.

13 Jean Jourdheuil, Le théâtre, l’artiste, l’état, 1979

14 Jean-Marie Brohm/Marc Perelman, Le Football une peste emotionnelle, 1998

15 Henri Focillon, L’ Éloge de la Main, 1943

16 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, 1956

17 Joost Smiers, "Quando o direito de autor é um entrave à criação", in Monde Diplomatique, Janeiro 2000

18 Jorge Silva Melo, "Teatro para os novos reis, religião dos novos papas" in Essas outras Histórias que há para contar, 1998

Eduarda Dionísio
Novembro 2000