O plano inclinado

Para Galileu Galilei,

por razões óbvias

 

Passou-me recentemente pelas mãos um velho livro de Física.

Ao folheá-lo, fui atraído pela descrição das experiências efectuadas pelo velho Galileu com o plano inclinado.

Galileu fez escorregar esferas de diversos tamanhos e diversos materiais por  um plano inclinado com diferentes inclinações.

Estas experiências permitiram-lhe constatar que :

- a velocidade que  as esferas atingiam não dependia do tamanho, nem do material de que as esferas eram feitas;

- a velocidade atingida só dependia da inclinação do plano, aumentando com esta.

Estes resultados obtidos por Galileu, que eu já conhecia, mas que estavam enterrados algures nas profundezas da minha arca de memórias, despertaram em mim uma ideia: se o plano inclinado tinha resultado tão bem, independentemente do material de que eram feitas as esferas, porque não experimentá-lo com palavras.

Experimentei então escrever num plano inclinado com esfero(gráfica). As palavras escorregavam a uma velocidade constante.

Reparei que quando inclinava mais o plano de escrita a velocidade das palavras aumentava até se tornar incomportável e as palavras caírem em catadupa e se partirem, resultando em textos de pé quebrado e sem sentidos. Tentava então em vão colá-los e reanimá-los.

Ajustei por fim a inclinação do plano para conseguir uma velocidade ideal para as palavras, que me permitisse recolhê-las em ordem numa folha de papel branca, estendida com todo o cuidado ao fundo do plano.

Depois de acertar a inclinação certa as palavras deslizavam umas após as outras e enchiam depressa a folha de papel.

Mas um outro problema surgiu de imediato: a mudança de folha de papel quando uma ficava cheia.

A princípio eu não era suficientemente rápido e algumas palavras perdiam-se. Tinha de procurá-las uma a uma, pois espalhavam-se pela mesa de trabalho e pelo quarto.

Ainda no outro dia, ao espreitar debaixo da cama, encontrei um espelho, coberto de cotão. Limpei-o cuidadosamente até de novo reflectir e coloquei-o em cima da cómoda. Utilizo-o todas as manhãs, quando me penteio.

Só depois de muitas tentativas e de muito treino consegui aperfeiçoar a técnica de mudar a folha de papel com a velocidade que a manobra exige.

Acabei também por me tornar exímio na arte de controlar a velocidade das palavras, à custa de pequenas variações da inclinação do plano.

Enquanto me não tornei perito nessa arte difícil da escrita em plano inclinado, tenho de confessar que fazia batota e preenchia o fim da folha com espaços.

Consegui desta forma  aumentar a dimensão do meu quarto, à custa de uns quantos espaços perdidos, caídos fora da folha, que depois soprava para o chão.

Hoje, alguns anos depois de treino continuado, perco em média duas palavras por cem folhas de papel A4, sobretudo as palavras esdrúxulas com mais de quatro sílabas, que são as mais complicadas de controlar.

Com essas palavras perdidas estou a criar um reservatório de palavras difíceis, que poderei vir a utilizar no futuro, se as palavras me faltarem. Poderão ser muito úteis, especialmente se pretender vir a escrever poesia modernista.

  As folhas cheias de palavras que preenchem os meus escritos foram  obtidas com a ajuda de um plano inclinado, calibrado para a língua portuguesa.

Renato Roque